Italiano morto no Titanic tem família no Brasil: ‘Sonhava com a América’

No final do século 19, o Brasil experimentou um grande fluxo de imigração, especialmente de italianos, em busca de uma vida melhor. Passados 150 anos do desembarque do primeiro vapor, o “La Sofia”, vindo de Gênova, descobri, ao pesquisar em cartórios, com parentes, livros e sites de genealogia, que um desses imigrantes era meu trisavô, o italiano Giovanni Testoni.

Giovanni chegou garoto, órfão de mãe, com o pai e a irmã caçula para trabalhar como camponês no Brasil. No entanto, o que mais me chamou a atenção foi outro registro que descobri por acaso: o de Ercole Testoni, um primo do meu trisavô.

Ambos queriam fazer a vida no “Novo Mundo”, mas Ercole seguiu anos mais tarde em outro navio, no caso, o transatlântico mais luxuoso de sua época, o RMS Titanic, operado pela White Star Line e inaugurado em 1912. “Ercole sonhava em se mudar para a América, mas, para poder embarcar no Titanic, precisava ter residência na Inglaterra, e ele partiu para lá”, me contou Sonia Testoni, professora de italiano e sobrinha-bisneta de Ercole que vive em Lyon, na França.

A SERVIÇO DA ELITE DO TITANIC

Natural de Bagni di Lucca, na Toscana, Ercole emigrou jovem, deixando seus pais Pietro e Maria, que preferiram ficar na Itália. Muitos de seus familiares partiram para outras regiões da Itália e do exterior e, por volta do ano 1900, meus ancestrais diretos partiram para o Brasil, pois a Itália sofria instabilidades, decorrentes da unificação, industrialização, problemas agrários.

“Fugiram os imigrantes de uma economia em crise, geradora de gravíssimos problemas sociais, conflitos, desemprego e fome”, explica o historiador Lourenço Guireli Jr., autor do livro “Monte Sion, Amore Mio”, sobre a imigração italiana para o sul de Minas Gerais. Ao mesmo tempo, segundo Guireli Jr., países como o Brasil estavam em busca de mão de obra para substituir o trabalho dos escravizados: “Iludiam os pobres. Pintavam o Brasil como a terra prometida”.

Sem a preocupação de ter esposa e filhos, Ercole Testoni imigrou para Londres (Inglaterra), que naquela altura também oferecia oportunidades. Por lá, conheceu outros imigrantes italianos e acabou contratado para trabalhar em um dos restaurantes de Luigi Gatti, que havia feito fortuna e procurava pessoal para embarcar em um transatlântico com destino à longínqua América: o Titanic.

Segundo informações do jornalista italiano Paolo Marzi, que pesquisou o tema, o trabalho no Titanic era árduo, o horário de serviço exaustivo (das 6h às 22h) e o público atendido dos mais exigentes além do famoso capitão Edward Smith, alguns dos homens mais ricos do planeta estavam lá. Ercole trabalhava no “A La Carte”, restaurante de 1ª classe do Titanic.

Como o primo do meu trisavô vinha do campo e esse seria seu primeiro emprego e em algo que não possuía experiência, ficou responsável pelo recolhimento, limpeza e manutenção de copos e taças, atuando como glass man, por três libras e quinze xelins de salário, registrou Marzi. Em 9 de abril de 1912, o jovem de 23 anos partiu de Londres para Southampton, onde embarcou no Titanic em 10 de abril.

SONHO INTERROMPIDO POR TRAGÉDIA

Já se passaram 112 anos desde que, na madrugada de 15 de abril, o Titanic colidiu com um iceberg. Entre as 2.240 pessoas a bordo, cerca de 40 italianos estavam presentes, sendo que 30 deles trabalhavam no navio como garçons, cozinheiros e limpadores. Apenas dois italianos foram salvos. Entre os que morreram no naufrágio, estava Ercole Testoni, conforme confirmado pela Encyclopedia Titanica.

Avariado pelo iceberg, o navio se partiu em duas partes e afundou nas águas geladas do Atlântico, ao largo da costa de Terra Nova (EUA), levando consigo para sempre a esperança de Ercole de uma vida melhor. “Sei que seus pais, meus trisavós, nem um túmulo para pranteá-lo tiveram, pois seu corpo nunca foi encontrado ou reconhecido”, informou Sonia.

Dos contratados por Gatti, apenas um sobreviveu. Dois dias após o naufrágio, a notícia chegou à Itália pelo jornal Il Corriere della Sera: “À meia-noite, nenhuma nova lista de sobreviventes foi recebida, parece que, exceto Portaluppi e Peracchio, nenhum dos italianos foi salvo. Há apenas uma lista parcial […]. O Sr. Gatti reservou-se ao direito de telegrafar a lista geral para White Star Line”.

O futuro de Ercole teria sido nos Estados Unidos, onde o esperava um trabalho como mordomo assistente. Essa é a última notícia que se tem sobre ele, afirmou Sonia. No Brasil, parte de sua família se instalou em Monte Sião (MG), para trabalhar nas lavouras, e, dali, seguiu para outras cidades. Alguns ficaram no país, outros regressaram e, apesar das distâncias e do tempo decorrido, ainda tentam manter sua história em comum conectada e viva.

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