Uma fonte de descobertas

Nair Benedicto durante entrevista em sua residência em São Paulo: mais de 50 anos de carreira registrando principalmente a história brasileira

Uma fonte de descobertas

A fotógrafa Nair Benedicto registrou os principais fatos da história brasileira em um período de 50 anos; material está abrigado no Arquivo Edgard Leuenroth

A fotógrafa Nair Benedicto registrou os principais fatos da história brasileira em um período de 50 anos; material está abrigado no Arquivo Edgard Leuenroth
Nair Benedicto durante entrevista em sua residência em São Paulo: mais de 50 anos de carreira registrando principalmente a história brasileira

Uma fonte de descobertas

A fotógrafa Nair Benedicto registrou os principais fatos da história brasileira em um período de 50 anos; material está abrigado no Arquivo Edgard Leuenroth

Existem pessoas consideradas “à frente de seu tempo”, mas o caso de Nair Benedicto é diferente: trata-se de uma mulher conectada com o presente, sempre atenta ao ambiente que a cerca. Com mais de 50 anos de carreira, a fotógrafa acumula vasto acervo imagético que registra principalmente a história brasileira, mas também a internacional. Esse material está abrigado no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), da Unicamp, desde o segundo semestre de 2024. As centenas de itens – majoritariamente negativos e cromos fotográficos, mas também livros, jornais, catálogos de exposições e outros, além de arquivos digitais – estão em processo de higienização, catalogação, classificação e devido armazenamento físico e digital para disponibilização à comunidade acadêmica e ao público em geral.

O diretor do AEL, Mário Augusto Medeiros: câmera fotográfica como arma contra a injustiça
O diretor do AEL, Mário Augusto Medeiros: câmera fotográfica como arma contra a injustiça
O diretor do AEL, Mário Augusto Medeiros: câmera fotográfica como arma contra a injustiça
O diretor do AEL, Mário Augusto Medeiros: câmera fotográfica como arma contra a injustiça

Para o diretor do AEL, o professor Mário Augusto Medeiros da Silva, a obra de Benedicto apresenta uma documentação preciosa que dialoga com o trabalho que o Arquivo vem desenvolvendo nos últimos quase 51 anos, desde a sua fundação durante a ditadura militar: preservar a memória de movimentos sociais, progressistas e histórias de resistência popular no Brasil e na América Latina. “Nair utiliza a câmera fotográfica como arma contra a injustiça e a favor do povo. Há fotos muito importantes dela sobre o mundo rural, dos quilombolas, a experiência de jongo e jongueiros [manifestação cultural afro-brasileira], de operárias e de mulheres na periferia, além da luta contra a ditadura.”

A multiplicidade de temas, que ainda se mantêm atuais, é uma característica do trabalho de Benedicto, que foi e ainda é testemunha ocular de situações muitas vezes marginalizadas – com foco especial nas mulheres, crianças, trabalhadores, indígenas e a reforma agrária. “Você quer entender a história do trabalho no Brasil contemporâneo? Dá. Entender a história das relações afetivas e familiares? A história da ditadura militar? Dá também. Difícil achar um tema de que ela não tenha dado conta”, acrescenta a diretora adjunta do AEL, professora Bárbara Geraldo de Castro.

A diretora adjunta do AEL, Bárbara Geraldo de Castro: pesquisas em diferentes áreas
A diretora adjunta do AEL, Bárbara Geraldo de Castro: pesquisas em diferentes áreas
A diretora adjunta do AEL, Bárbara Geraldo de Castro: pesquisas em diferentes áreas
A diretora adjunta do AEL, Bárbara Geraldo de Castro: pesquisas em diferentes áreas

Para Benedicto, o acervo representa uma fonte de descobertas, que podem motivar pesquisas em diferentes áreas. “Ele tem toda a formação do PT [Partido dos Trabalhadores], tem o movimento feminista [com fotografias das passeatas do Dia Internacional das Mulheres em São Paulo desde os anos 1970], por exemplo”, destaca. A profissional lamenta a falta de memória da história brasileira e menciona o sucesso mundial do filme “Ainda estou aqui” e o serviço que a produção está fazendo pelo país: “O Brasil viu que a memória é algo que custa caro a gente perder”.

A militância de sua obra é presente também na escolha da instituição que abrigaria seu acervo. O processo envolveu intermediação da historiadora Sônia Fardin e longa negociação contratual que instituiu um Conselho Gestor, encarregado de acompanhar todos os procedimentos e usos que envolvam o acervo de Nair Benedicto, composto por membros indicados pela fotógrafa (Miguel Breyton, Mary Stockler e Sônia Fardin) e representantes do AEL, além da própria fotógrafa.“Nair se preocupou em fazer a doação para uma instituição pública, sem fins lucrativos, assegurando que sua obra fosse utilizada por pessoas preocupadas em entender o Brasil e as desigualdades”, afirma Castro. Benedicto conta sobre a escolha da Unicamp para receber seu acervo nesta entrevista, feita em sua residência, em São Paulo:

Digitalizar todo o material doado é um dos compromissos do AEL, que também enfrenta o desafio de receber os arquivos nativos digitais. “Isso impõe uma série de questões: como prover espaço de armazenagem seguro, de longa duração, para preservação dessas fotografias nato-digitais. Já temos alguns acervos com essa característica – mas nesse volume é uma novidade. A equipe está muito empenhada em construir esse espaço de preservação”, diz Castro.

Referência no fotojornalismo e no jornalismo documental, Benedicto tem também forte circulação em museus, com obras nos acervos fotográficos de diversas instituições, como o Museu de Arte Moderna (MoMa, em inglês) de Nova Iorque, o Smithsonian Institute (Washington, Estados Unidos), o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ) e a Coleção Pirelli do Museu de Arte de São Paulo (MASP).

Fotografias que compõem o acervo de Nair Beedicto, referência no fotojornalismo e no jornalismo documental
Fotografias que compõem o acervo de Nair Beedicto, referência no fotojornalismo e no jornalismo documental
Fotografias que compõem o acervo de Nair Beedicto, referência no fotojornalismo e no jornalismo documental
Fotografias que compõem o acervo de Nair Beedicto, referência no fotojornalismo e no jornalismo documental

Vida e carreira

O olhar social de Nair Benedicto é parte de sua personalidade e foi moldado pela sua trajetória de vida. Benedicto nasceu em São Paulo, em 1940, a caçula de seis irmãs e um irmão. Quando ingressou na segunda turma da faculdade de Comunicação Social – Habilitação Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), em 1967, já era mãe de três filhos com o então marido, o francês Jacques Emile Frederic Breyton. Acusada de colaborar com a resistência contra a ditadura militar, aos 29 anos de idade (entre 1969 e 1970) foi presa e torturada, ficando nove meses encarcerada no Deops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo) e depois no Presídio Tiradentes, onde integrou o primeiro grupo de presas políticas da Torre das Donzelas.

Graduou-se na faculdade em 1972. Benedicto afirma que, da prisão, saiu muito mais poderosa do entrou. Fez amizades que perduram até hoje, com quem idealizou projetos profissionais como o Jornal da Vila (cujas edições também foram cedidas ao AEL), em parceria com Laís Tapajós. A experiência traumática foi decisiva para que decidisse apostar na fotografia, uma vez que o trabalho na televisão exigia a apresentação de um atestado de idoneidade.

O fato de atuar frequentemente sozinha e de se inserir no ramo ainda masculinizado da fotografia de rua tornava Benedicto “uma das raras mulheres se destacando neste trabalho”, defende Castro. Seu pioneirismo está presente também na fundação, com outros colegas, da Agência F4, em 1979 – primeira cooperativa de fotógrafos do país, que funcionou até 1991. A organização permitiu a implantação de inovações para o mercado brasileiro da época, como a autonomia dos profissionais e o controle da produção e da distribuição de suas obras.

A independência de propor suas próprias pautas era uma questão cara para o grupo. Benedicto lembra que seu primeiro trabalho autônomo estava relacionado ao preconceito contra nordestinos que migraram para São Paulo, o que culminou em uma de suas famosas fotografias, “Tesão no forró” (1978), que alçou sua carreira a nível internacional. A profissional aborda seu início na profissão e sua visão sobre a fotografia no vídeo:

A Agência F4 também lançou dois livros especiais em 1980 com fotografias de Benedicto. O primeiro, “A Greve do ABC”, com texto de Ricardo Kotscho, é uma obra rara, pontua Castro. A foto de capa é uma reapropriação simbólica da bandeira do Brasil pelos operários, contra a violência da ditadura, como contextualizou Benedicto em diversos momentos.

O segundo livro, “A questão do menor”, marca o primeiro registro fotográfico dentro de unidades da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem) do estado de São Paulo, escancarando situações de maus-tratos e provocando repercussões que contribuíram para mudanças no sistema. Ambas as publicações também podem ser consultadas no AEL.

Após o encerramento da F4, Benedicto participou da criação do Núcleo dos Amigos da fotografia (NAFoto), que promoveu diversas edições do Mês Internacional da Fotografia de São Paulo. Fundou também sua própria agência, a N-Imagens. Em 1988, foi publicada uma coletânea do seu trabalho denominada “As melhores fotos de Nair Benedicto”. Em 2012, foi a vez de “Vi Ver – fotografias de Nair Benedicto”, um compilado completo de suas obras.

A fotógrafa viajou o país inteiro, e também o exterior, fotografando problemas sociais
A fotógrafa viajou o país inteiro, e também o exterior, fotografando problemas sociais
A fotógrafa viajou o país inteiro, e também o exterior, fotografando problemas sociais
A fotógrafa viajou o país inteiro, e também o exterior, fotografando problemas sociais

Olhar feminista

Benedicto está inserida numa geração de fotógrafos que se consagraram na década de 1970, dedicada a documentar a história em andamento. Desde o início da carreira, a fotógrafa questiona a maneira como o afeto físico e a sexualidade são tratados pela sociedade. “O que penso está na minha fotografia, pelo menos tento colocar, na medida do possível”, afirma.

Com um olhar feminista para a vida e a fotografia, ela buscou debater esse tema com iniciativas como a realização de projetos audiovisuais como “O prazer é nosso” – que fala da sexualidade feminina e foi exibido em um dos encontros anuais da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência em 1978 – e “Não quero ser a próxima”, sobre violência doméstica. São também obras de sua autoria nesse formato “E agora, Maria?” e “Qualidade de ambiente, qualidade de vida”.

Em 2024, a exposição “Mulheres em luta”, realizada no Memorial da Resistência de São Paulo, estampou imagens de Benedicto no muro do corredor de sol do antigo Deops. As fotos retratam mulheres de diferentes classes sociais, cores e origens unidas em oficinas para aprenderem sobre seu próprio corpo e seus direitos. “Nair fotografou esses encontros de mulheres com um olhar muito altivo, de solidariedade entre elas, conhecendo-se e conhecendo também direitos e problemas em comum, criando soluções em comum”, expõe Silva. As oficinas “Conhecendo o corpo feminino” foram promovidas por organizações feministas em São Paulo em 1984. Benedicto fala sobre essas experiências no vídeo:

Testemunha da história

Benedicto viajou o país inteiro, e também o exterior, fotografando problemas sociais, seja através da Agência F4 ou de trabalhos comissionados para grandes veículos. Pela UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), percorreu países da América Latina registrando as condições de vida de crianças e mulheres na América Latina. “A fotografia tinha esse papel de testemunho ocular da história. Quando todo mundo desconfiava dos textos, porque havia as disputas de narrativas, de repente você tem registro em imagem. Então não é à toa que havia essa vontade [dos fotógrafos] de viajar país afora para registrar o que estava acontecendo”, explica Castro.

Uma das fotografias mais famosas de Benedicto é “Mulheres do Sisal (1985)”, publicada pela primeira vez na capa da revista alemã Stern e cuja composição a faz ser facilmente confundida com uma pintura. Apesar de sua beleza, a imagem é parte de uma série que retratou as precárias condições de trabalho na Bahia, onde uma máquina mal ajustada acabava por provocar mutilações em grande parte dos trabalhadores, uma história que Benedicto conta no vídeo abaixo.

Contato com indígenas

Castro aponta que uma marca de Benedicto é o olhar subversivo de suas imagens, “construído para a agência das pessoas, não somente para a submissão”, a exemplo da cobertura da construção da Transamazônica, que retrata a população do entorno e os impactos da devastação ambiental. “Ela foi uma das fotógrafas a registrar a construção da rodovia nos anos Médici [entre 1969 e 1974, quando o general Emílio Garrastazu Médici governou o Brasil], mas também a doação de terras do governo para colonos avançarem a fronteira agrária do país. Ela tem esse olhar para a degradação, mas também registra essa microrresistência cotidiana.”

Fotografar a Amazônia era um desejo dela, assim como conhecer tribos indígenas e os impactos dos grandes projetos em suas terras. Seu primeiro contato com os indígenas ocorreu por volta do início da década de 1980, época em que também registrou a vida no garimpo de Serra Pelada. Benedicto fotografou os Kayapó no Pará e fez as primeiras imagens dos Arara – que haviam tido contato recente com pessoas fora da tribo e viam suas terras invadidas pela construção da Transamazônica. Também fotografou os Kaxinawá, no Acre, e os Tembé, também no Pará.

Benedicto participou como fotógrafa do Primeiro Encontro Indigenista Brasileiro, em 1989. No vídeo, ela conta como essas incursões à região Norte mudaram sua perspectiva sobre a preservação ambiental.

Ao fazer um balanço das mais de cinco décadas de carreira, Nair Benedicto afirma que a fotografia lhe permitiu e ainda permite realizar muitas coisas para além das funções de mulher, esposa e mãe. “Não gosto de ficar presa, gosto de pegar a máquina e ir para a rua. O mundo é muito grande para ficarmos em um lugar só, e temos uma capacidade de aprendizado incrível.”

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