A arte de mudar para deixar tudo como está

Fachada do Congresso NacionalJonas Pereira/Agência Senado

A ideia de acabar com a reeleição para os cargos executivos e de fixar em cinco anos os mandatos de todos os políticos eleitos no Brasil já vinha circulando com tanta desenvoltura no Congresso que sua aprovação era dada como certa mesmo antes de ser levada à apreciação da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado.

Tanto isso é verdade que a Proposta de Emenda Constitucional que trata do assunto — apresentada pelo senador Jorge Kajuru (PSD) e relatada por Marcelo Castro (MDB) — foi aprovada com alguns ajustes, sem envolver polêmicas nem bate-boca entre a direita e a esquerda, em sessão na quarta-feira passada.  

Não houve sequer a necessidade de contagem de votos. Todos estavam do mesmo lado. E é aí que o assunto começa a merecer atenção redobrada: sempre que um projeto dessa envergadura é aprovado sem discussões, sem divergências e sem consultas públicas, a sociedade pode ter certeza: os interesses dos políticos estão colocados à frente dos seus — o que não chega a ser uma novidade do Brasil.

A matéria, agora, será levada à apreciação do plenário. Se receber o apoio de pelo menos 54 dos 81 senadores — número que deverá ser superado sem dificuldade —, seguirá para a Câmara dos Deputados.  

Ali também não deverá enfrentar maiores resistências. Aliás, é provável que o presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos), esteja ansioso, à espera de colocá-la em discussão. A verdade é que Motta tem se apegado a qualquer desculpa que encontre pela frente para tentar aliviar a pressão que vem recebendo desde que decidiu transformar a Mesa Diretora da Câmara numa espécie de despachante dos interesses do Executivo e do Judiciário junto ao poder Legislativo.  

Sem se preocupar em esconder sua subserviência aos outros dois poderes, Motta tem resistido com todas as forças ao pedido de instalação da CPI desejada por toda sociedade para investigar o assalto bilionário aos aposentados do INSS. E, para completar, finge que o projeto apoiado por boa parte dos deputados, que pretendem anistiar os condenados pelas manifestações do dia 8 de janeiro, simplesmente não existe.

Desde que se sentou na cadeira de presidente, ele nada mais fez do que subordinar os interesses do Poder Legislativo (e, portanto, a sociedade que ele deveria representar) aos do Executivo e do Judiciário.    

Fogueiras de São João

É lamentável, mas é a mais pura verdade. Motta não tem se mostrado à altura de presidir um poder que deve trabalhar em harmonia com os demais, como estabelece a Constituição, mas que não pode abrir mão de sua independência. Ele não perde a pose de autoridade, é verdade, mas age como se não passasse de uma ordenança do Executivo e do Judiciário. Só faz o que os outros poderes consentem que faça e não se cansa de ir atrás de pautas secundárias para dar a a impressão de que ele ainda tem algum poder.  

Na semana passada, por exemplo, enquanto o Brasil cobrava uma atitude do Congresso em relação ao assalto ao INSS, Motta criou um Grupo de Trabalho que, segundo ele, terá 45 dias de prazo para elaborar uma proposta de Reforma Administrativa para o governo federal.

Sua Excelência deve ter se dado conta de que a sociedade, de fato, tem dado sinais de exaustão diante da qualidade lamentável do Serviço Público brasileiro — e que os cidadãos adorariam ter pelo menos a quem reclamar do péssimo atendimento que recebem toda vez que precisam recorrer ao Estado para qualquer assunto. Isso é verdade.  

Acontece, porém, que a sinceridade da preocupação que o presidente da Câmara manifesta em relação à qualidade da administração federal cai por terra no momento em que ele tenta impedir com todo o poder da autoridade de seu cargo que a Casa investigue a roubalheira no INSS. Se ele estivesse minimante interessado cm melhorar a qualidade do serviço público, seria natural que desse preferência à solução do problema mais urgente, não é mesmo? Só que não.   

O que o assalto aos aposentados tem a ver com a ideia da Reforma Administrativa? Ora, apenas uma questão de prioridade. Pensar em reformar toda estrutura do serviço público e, ao mesmo tempo, virar as costas para o problema agudo que, neste momento, incomoda ao país inteiro é o mesmo que, diante da descoberta de um vazamento no encanamento da cozinha, o proprietário de um imóvel deixe de providenciar o conserto do cano furado com a desculpa de que tem o plano de, um dia, por tudo abaixo e reconstruir a casa tijolo por tijolo. 

Em tempo: o prazo de 45 dias que o presidente da Câmara estabeleceu para a conclusão da tarefa vence no próximo dia 6 de julho, um sábado. Acontece, porém, que o Congresso Nacional, como até carpete do Salão Verde sabe, não tem o hábito de pegar no batente no mês de junho, quando acontecem as festas tradicionais, dedicadas a Santo Antônio, São João e São Pedro na região Nordeste.

Será que a turma vai deixar de comparecer ao forró e às fogueiras que começam a arder já no próximo final de semana para cumprir a missão que foi dada por Motta? 

Seja como for, se o prazo for mesmo cumprido, e sem qualquer discussão sobre a qualidade das propostas que vierem a ser apresentadas, Motta receberá os devidos pedidos de desculpas da coluna caso tenha algo a apresentar em julho, quando se inicia o recesso parlamentar. À primeira, à segunda e à terceira vistas, a possibilidade de que ele tenha algo a mostrar na data marcada, com toda sinceridade, é muito próxima de zero. 

Num cenário como esse, receber do Senado um projeto como o que dispõe sobre o fim da reeleição e a alteração do tempo de mandato dos cargos eletivos, pode trazer um pouco de paz ao presidente da Câmara.

Isso, porém, não elimina as dúvidas em relação aos interesses que existem por trás do fim da reeleição e da unificação dos mandatos em cinco anos. Qual é, em primeiro lugar, a necessidade de lidar com esse problema justamente agora? Outra questão: o que existe de tão ruim no atual modelo que exija uma mudança tão profunda como a que está sendo proposta?  

Deu tudo errado

Essas questões devem ser respondidas por etapas. Vamos lá: as eleições de 2026 darão início a um processo de mudanças que resultará, a partir do pleito de 2034, na coincidência de todos os mandatos eletivos do país. Isso mesmo: todos!

A ideia é que o presidente da República, os governadores e os prefeitos de todos os municípios brasileiros sejam eleitos para períodos de cinco anos — um a mais do que o mandato atual — e não tenham direito à reeleição. Os senadores, deputados federais, deputados estaduais e vereadores também terão mandatos de cinco anos — que, a exemplo do que acontece atualmente, poderão ser renovados nas eleições seguintes. 

O único ponto controverso no texto original era o que estendia de oito anos para dez anos os mandatos no Senado. Alguns senadores de bom senso, como Carlos Portinho (PL), Eduardo Girão (Novo) e Jorge Seif (PL), alertaram para o efeito devastador que a aprovação dessa proposta teria sobre a opinião pública e propuseram que o mandato dos senadores, como os dos demais, fosse fixado em cinco anos. Felizmente, foram atendidos.

Pelos critérios de equalização previstos no projeto, os senadores eleitos em 2030 terão um mandato de nove anos. Em 2034, o mandato será de cinco anos. A partir de 2039, cada estado passará a eleger três senadores a cada eleição.  

O projeto, à primeira vista, tem um objetivo nobre, sobretudo no que diz respeito aos cargos executivos. Ele parte do princípio de que o instituto da reeleição, aprovado em 1997, durante o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, não deu certo.

A ideia que motivou a adoção desse critério partia do princípio de que um mandato de quatro anos era insuficiente para que o político apresentasse, aprovasse e executasse projetos relevantes — sendo necessário mais tempo para realizar tudo o que tinha sido prometido ao povo. Optou-se, então, por criar um mecanismo que desse ao eleitorado a oportunidade de avaliar o governo do presidente, dos governadores e dos prefeitos.  

O eleito ganharia o direito de disputar a eleição seguinte e, se vencesse, poderia ficar mais quatro anos no poder. Seria uma espécie de teste de qualidade do mandato. Deu tudo errado. Desde que o mecanismo foi posto em prática, os políticos passaram a se preocupar mais com o próprio futuro do que com o futuro do país.

Ao invés de propor medidas estruturantes, como se espera dos governantes de um país onde há tanta coisa para fazer, os governantes eleitos, de um modo geral, se dedicaram a projetos populistas, superficiais e cada vez mais onerosos para os cofres públicos.

“A experiência acumulada em quase trinta anos de vigência da regra da reeleição não correspondeu às expectativas”, disse o relator do projeto, senador Marcelo Castro. 

Votação do Orçamento

A ideia de fixar os mandatos do Executivo em cinco anos induz a uma renovação dos quadros políticos que é mais difícil no modelo atual e, a princípio, deve ser recebida como uma mudança positiva. Mas, mais importante do que o tempo do mandato é o uso que se faz dele. O problema da reeleição não é o tempo estendido do mandato, mas a forma como os políticos o exercem. 

A pergunta a ser feita é: a culpa pelo fracasso da reeleição é do tempo de mandato ou da forma com que os políticos brasileiros o exerceram? A comparação óbvia, nesse caso, é com os Estados Unidos.

Desde a eleição de George Washington, em 1789, todos os presidentes do país foram eleitos para mandatos de quatro anos, com direito à reeleição. Até 1947, todos os presidentes poderiam concorrer a quantas eleições quisessem, mas o único que excedeu dois mandatos foi Franklin D. Roosevelt. Depois dele, cada presidente passou a ter direito a apenas dois mandatos, consecutivos ou não.

Por que um dispositivo que dá certo há mais de dois séculos nos Estados Unidos não resistiu a três décadas no Brasil? Por que a reeleição dá tão certo para eles e deu tão errado para o Brasil? 

Todas as respostas aceitáveis para essa questão passam pela consistência do arcabouço institucional de cada um dos dois países. Nos Estados Unidos, as atribuições de cada um dos três poderes são nítidas e os governantes eleitos estão sujeitos a um acompanhamento atento de toda a sociedade.

Desde que cada um faça aquilo que tem a responsabilidade de fazer, a possibilidade de interferência de um sobre o outro é mínima e circunscrita a casos de desvios flagrantes da lei. O Legislativo americano serve para legislar, o Judiciário para cuidar das leis e o Executivo para tocar o governo. 

Não existe por lá, por exemplo, a hipótese de que o Congresso deixe de aprovar uma lei simplesmente porque a Suprema Corte pode não gostar da decisão. O Legislativo americano tem poder diante dos demais. Mas, também, tem obrigações que podem se voltar conta ele se não forem cumpridas à risca. Um exemplo é o orçamento. Se a peça não for votada no prazo definido em lei, o governo simplesmente fica sem recursos para manter a máquina em funcionamento.  

Isso mesmo. Sem autorização legislativa, o dinheiro não pinga nas contas de nenhum órgão público americano, nem do próprio Congresso. Como essa questão é levada a sério, os deputados e senadores de lá simplesmente não ousam fazer como os brasileiros, que tratam o orçamento federal apenas como uma formalidade que todo ano pode ser empurrada com a barriga e, no ponto de vista deles, parece destinada apenas a garantir que haja dinheiro para as emendas que eles apresentam. Nos Estados Unidos, eles discutem a questão a fundo e deliberam sobre um documento que é executado à risca pelo Executivo. Por aqui, vigora a farra que todo mundo conhece. 

O sistema dos Estados Unidos é perfeito? Claro que não. Acontece, porém, que, em qualquer democracia que mereça ser chamada por esse nome, o respeito às instituições e aos limites de cada uma delas é pré-requisito para o exercício de qualquer função pública. Por lá, os políticos é que precisam adequar seus interesses às regras que regem o processo político. No Brasil, quando as circunstâncias e as regras do jogo deixam de atender às conveniências dos políticos, mudam-se as leis para que elas possam atendê-los. 

Financiamento eleitoral

  É aí que as razões que movem os políticos nessa história da unificação dos mandatos começam a ficar mais claras. Desde que o Legislativo renunciou ao poder de representar a sociedade e passou a se preocupar quase que exclusivamente em garantir seu poder de execução orçamentária (função que, em governos sérios, é exclusiva do Poder Executivo), a questão da duração dos mandatos do presidente, dos governadores e dos prefeitos tornou-se secundária (para não dizer irrelevante).  

Isso mesmo! A preocupação com a duração de um mandato e com o prazo para a implantação de projetos de longo prazo só faz sentido num cenário em que as responsabilidades de uns não se misturam com as dos outros.

Na medida em que os deputados e senadores parecem preocupados exclusivamente em pôr a mão no dinheiro das emendas para financiar obras de pequeno porte em seus currais eleitorais, em financiar ONGs tocadas por seus aliados ou em participar da execução das emendas secretas — em que ninguém sabe o destino do dinheiro —, um ano a mais de mandato significa, na prática, um aumento de 20% no prazo que os detentores de mandatos legislativos terão para gastar dinheiro público para financiar seus próprios interesses. 

Uma outra questão a ser observada nessa história é a das eleições e a da bolada que os partidos políticos recebem por meio dos indecentes Fundo Partidário e Fundo Eleitoral. A título de informação, a bolada no ano passado, quando houve eleições municipais, foi bem polpuda. Foram mais de R$ 4,9 bilhões do fundo eleitoral e mais ou menos R$ 1,1 bilhão do fundo partidário. Somem-se esses valores e o resultado R$ 6 bilhões, é muito parecido com o dinheiro que os fraudadores do INSS desviaram dos aposentados. 

Se é assim, por que Suas Excelências, que, pelo regime atual, põem a mão numa bolada desse tamanho a cada dois anos, estariam preferindo fazer uma eleição a cada cinco anos?  

Na opinião dos defensores da medida, a sociedade brasileira está cansada de viver em clima de eterna disputa eleitoral e o fim da possibilidade de reeleição fará com que os políticos passem a se preocupar com as obrigações do mandato conquistado ao invés de ficarem o tempo todo tomando medidas de caráter superficial e populista com os olhos voltados para o mandato seguinte. 

Isso, claro, é verdade. O problema é que os políticos brasileiros — como se viu recente na votação da matéria que aumentou para 531 o número de deputados federais, que atualmente é de 513 — não demonstram a menor preocupação com o que a sociedade deseja ou deixa de desejar.

Eles são incapazes de aprovar uma única matéria que toque, ainda que superficialmente, em seus privilégios, e toda e qualquer decisão que tomam em relação aos critérios eleitorais e aos prazos de mandatos têm como único objetivo tornar para eles a situação mais fácil do que já é. Ou melhor: de promover mudanças que parecem profundas para, no final das contas, deixar tudo exatamente como está.

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