Os marcos do governo de Pepe Mujica

Essa reportagem foi publicada pelo La Diaria e republicada em parceria pela Agência Pública.

O sol cobria a Praça Independência, em Montevidéu, onde se aglomeravam milhares e milhares de pessoas carregando bandeiras da Frente Ampla (FA), que acabara de chegar ao governo pela segunda vez consecutiva. Gritos e aplausos enchiam o local. O novo presidente, José Mujica, estava sereno na tribuna, onde seu antecessor, Tabaré Vázquez, tiraria a faixa presidencial e a entregaria a Mujica. Após breves aplausos, Vázquez abraçou Mujica. O ex-preso político e um dos reféns da ditadura, tornava-se, em 1º de março de 2010, o quadragésimo presidente do Uruguai.

Seu governo se constituiu sobre as bases estabelecidas por seu antecessor, mais livre das amarras que limitaram grande parte do mandato anterior e exigiram a priorização de políticas sociais para reverter as tendências herdadas da crise econômica que afetou o país em 2002.

“Uma revisão profunda é inadiável”, disse Mujica em seu discurso de posse, no Palácio Legislativo. “Temos que redesenhar o Estado: todos sabemos que ele pode ser mais eficiente e barato”, acrescentaria, para então anunciar “a mãe de todas as reformas”. No entanto, a reforma do Estado não foi concretizada e continua sendo uma pendência na agenda programática de diversos partidos políticos.

Uma das primeiras grandes decisões do governo Mujica foi declarar estado de “emergência da população em situação de precariedade socio-habitacional”, com o Decreto 171/010, que também deu origem ao Plano Nacional de Integração Socio-Habitacional, conhecido como Plano Juntos.

O programa, institucionalizado pela Lei 18.829 um ano depois, tem como objetivo fornecer recursos a famílias em situação de extrema vulnerabilidade que necessitam de facilidades para acessar moradia. O projeto foi financiado por recursos estatais e doações da iniciativa privada. Durante o período, beneficiou cerca de 2.500 famílias, embora a meta inicial fosse alcançar cerca de 15 mil.

Outro dos pilares sobre os quais Mujica teve influência direta foi a criação da Universidade Tecnológica (UTEC), para garantir o acesso ao ensino superior no interior do país e formar novos polos universitários fora da capital, paralelamente à incipiente expansão da Universidade da República, maior instituição pública de ensino superior do país.

No entanto, a lei que institucionalizou a UTEC foi aprovada apenas no meio de seu governo, e Mujica não chegou a inaugurar o primeiro centro regional, tarefa que coube ao segundo mandato de Tabaré Vázquez. O plano também foi mantido sob o governo do ex-presidente Luis Lacalle Pou e, atualmente, a instituição conta com dez centros regionais em oito departamentos do interior.

Despenalização do aborto, casamento igualitário e maconha legal

Os cinco anos em que Mujica esteve à frente do governo foram marcados por uma série de mudanças sociais profundas, que resultaram em avanços em uma agenda de direitos que permanece vigente até hoje.

Em 2012, e ao contrário de Tabaré Vázquez — que havia se oposto à despenalização do aborto por motivos religiosos —, Mujica ratificou a Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez, que despenaliza os abortos realizados antes das 12 semanas de gestação e estabelece a obrigatoriedade de cumprimento da norma por todas as instituições que integram o Sistema Nacional Integrado de Saúde, além de garantir o direito à confidencialidade das pacientes.

Apenas um ano depois, e graças aos esforços do coletivo LGBTQIA+ Ovejas Negras, a Frente Ampla promoveu e aprovou no Parlamento a Lei 19.075, que institucionalizou casamentos entre pessoas do mesmo sexo no Registro Civil. Também em 2013, a Lei 19.172 regulamentou e supervisionou a produção, distribuição e venda da cannabis no Uruguai, sob responsabilidade do Instituto de Regulação e Controle da Cannabis.

Os ex-prisioneiros de Guantánamo

Outro ato marcado pela identidade política de Mujica em seu governo foi o acolhimento de seis ex-prisioneiros da prisão de Guantánamo na condição de refugiados, em 2014.

A chegada dos refugiados gerou polêmica entre setores da oposição, já que alguns dirigentes questionaram o envolvimento do país em assuntos considerados externos, assim como os motivos por trás da decisão. O governo teve que lidar com um acampamento montado pelos refugiados em frente à embaixada dos Estados Unidos, em protesto por uma suposta falta de soluções concretas, além da greve de fome do sírio Jihad Diyab, diante da impossibilidade de deixar o país e reencontrar sua família.

Anos mais tarde, o ex-presidente classificaria a ação do governo como parte de um acordo com o então presidente dos EUA, Barack Obama.

“Para vender uns quilos de laranja aos EUA, tive que aguentar cinco malucos de Guantánamo” disse ele em um evento na Argentina, segundo o jornal El Observador.

O fechamento da Pluna e as crises

Para além dos avanços, o governo de Mujica também foi marcado por crises econômicas e de gestão, como a que afetou a companhia aérea Pluna e culminou em seu fechamento. O caso resultou em uma decisão judicial favorável à empresa Latin American Regional Aviation Holdings (Larah), proprietária da Leadgate, sócia majoritária da companhia, obrigando o Estado uruguaio a pagar cerca de 30 milhões de dólares, mais juros. O processo também levou ao indiciamento do então ministro da Economia e Finanças, Fernando Lorenzo, e do ex-presidente do Banco República, Fernando Calloia, em razão da venda frustrada de sete aviões Bombardier que pertenciam à empresa aérea.

Em 2024, Mujica declarou que a Pluna “estava morta havia uma década”, e que não lhe restou alternativa a não ser fechá-la, criticando o mecanismo utilizado pela Larah. O ex-presidente manifestou o desejo de que “algum dia” seja possível “criar uma corte de direito que obrigue as multinacionais e os investidores estrangeiros a litigar no Uruguai”.

Outro projeto impulsionado por seu governo foi a instalação de uma plataforma de regaseificação na Baía de Montevidéu. No entanto, o empreendimento, conduzido pela sociedade anônima estatal Gas Sayago, fracassou. A empresa passou por um processo de liquidação concluído em 2024.

O negócio malsucedido levou a uma investigação judicial após a presidente da UTE, Silvia Emaldi, denunciar supostas irregularidades no processo de licitação, além da existência de gastos injustificados com cartões corporativos da empresa, conforme apontado por uma auditoria solicitada pela atual diretoria do órgão. Emaldi declarou na época que até 2021 o projeto havia causado um prejuízo de 213 milhões de dólares, somado a uma ação judicial de 37 milhões contra o Estado e aos custos de desmontagem das estacas da plataforma flutuante, estimados em “mais oito milhões”.

Foram chamados a depor no processo o ex-presidente da Ancap, Raúl Sendic, o da UTE, Gonzalo Casaravilla, e a ex-gerente da sociedade anônima, Marta Jara — que processou com sucesso o Estado, recebendo 175 mil dólares por salários não pagos pela empresa. Contudo, a denúncia foi arquivada, pois não foram constatados atos arbitrários ou ilegais que representassem prejuízo deliberado ao Estado.

Outra iniciativa promovida no governo Mujica, mas que também não se concretizou, foi o projeto Aratirí: um complexo de mineração na região de Valentines, associado a um porto de águas profundas no departamento de Rocha, com o objetivo de extrair e exportar minério de ferro. O plano envolvia um acordo com a empresa indiana Zamin Ferrous, firmado durante o governo Mujica. O projeto foi anunciado sem estudos de viabilidade e de impacto ambiental, o que gerou críticas de movimentos ambientalistas e do Partido Nacional, de oposição.

Durante o governo Mujica foi aprovada a Lei 19.126, que regula a mineração de grande porte no Uruguai, estabelecendo uma série de exigências e um regime tributário especial para esse tipo de operação. No entanto, a aprovação da lei levou quatro representantes da Zamin Ferrous a processarem o Estado uruguaio por 3,54 bilhões de dólares junto à Corte Permanente de Arbitragem, alegando que as condições do projeto haviam sido alteradas durante o processo.

A ação foi baseada em um tratado de proteção de investimentos ratificado por Uruguai e Reino Unido, mas acabou fracassando anos depois, já que alguns dos representantes não tinham nacionalidade britânica e, portanto, não estavam habilitados a invocar o tratado. Por fim, o projeto nunca foi concretizado, e com ele naufragaram os planos do porto de águas profundas.

Os números do governo

“Somos um país decente”, mas no Uruguai “ninguém morre de tanto trabalhar”. A frase de Mujica, dita em seu mandato durante um evento com empresários europeus em Madri, foi registrada pela agência de notícias Europa Press e amplificada pela imprensa uruguaia, gerando polêmica. O mercado de trabalho uruguaio encerraria aquele ano (2013) com uma taxa média de desemprego de 6,5% — desde então, nenhum outro ano terminou com um índice mais baixo. No ano passado, por exemplo, a taxa média de desemprego foi de 8,3%.

Durante o governo de Mujica, o percentual de trabalhadores ocupados, mas não registrados na seguridade social — ou seja, o nível de informalidade — caiu de 31% para 25%. No mesmo período, o índice médio de salários superou de forma consistente o índice de preços ao consumidor, o que resultou em aumento anual do poder de compra. O maior crescimento foi registrado em 2012, quando a inflação ficou cinco pontos percentuais abaixo do salário real.

Todos esses indicadores se deram em um contexto de crescimento econômico contínuo. De fato, no primeiro ano do governo Mujica (2010), o PIB uruguaio cresceu 7,8% — o maior aumento anual nos 15 anos de governos da Frente Ampla. Nos anos seguintes, o crescimento foi de 5,2% (2011), 3,5% (2012), 4,6% (2013) e 3,2% (2014). Desde então, e até a recuperação pós-pandemia, a economia uruguaia não voltou a crescer acima de 3%. Ao final de 2013, as exportações do país somaram 9,1 bilhões de dólares, um recorde que só seria superado em 2021 e 2022.

Por outro lado, a situação das contas públicas piorou de forma constante durante o governo de Mujica. O déficit fiscal triplicou em cinco anos: começou em 1% em 2010 e terminou em 3,4% em 2014. Paralelamente, a dívida bruta como proporção do PIB se manteve estável, em torno de 60%.

Durante o governo Mujica, a pobreza foi praticamente reduzida à metade: passou de 18,6% em 2010 para 9,7% em 2014. Segundo o Instituto Nacional de Estatística, no ano passado o percentual de pessoas abaixo da linha da pobreza foi de 10%. A desigualdade, por sua vez, caiu em todos os anos, exceto entre 2012 e 2013.

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