Manobra pró-Ramagem na Câmara desafia Constituição e antecipa debate sobre vínculo com 8/1

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Aprovada pela Câmara dos Deputados na quarta-feira (7), a suspensão da ação no STF (Supremo Tribunal Federal) contra Alexandre Ramagem (PL-RJ) desafia a Constituição e antecipa um debate sobre o vínculo dos crimes com os atos de 8 de janeiro.

A medida, além de contrariar entendimento da corte de que somente parte da ação poderia ser barrada, abre brecha para que outros réus acusados de tramar um golpe de Estado em 2022 sejam beneficiados, inclusive o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Advogados e professores de direito consultados pela reportagem dizem que a Casa tem poder para sustar ações contra deputados, mas forçou o limite constitucional ao suspendê-la na integralidade e em relação a todos os crimes imputados.

O Supremo tornou Ramagem réu em março sob acusação de golpe de Estado, abolição violenta do Estado democrático de Direito, organização criminosa armada, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.

Como ele é deputado, o tribunal notificou o Congresso. A Constituição estabelece que, recebida a denúncia contra senador ou deputado por crime ocorrido após a diplomação, a respectiva Casa pode suspender o andamento de ação contra o congressista.

Essa proteção é garantida na seção do texto que trata da imunidade parlamentar. De acordo com Raquel Scalcon, professora da FGV Direito SP, a questão central é saber se essa prerrogativa foi exercida dentro dos limites.

Após pedido de esclarecimento do deputado Lindbergh Farias (PT-RJ), o presidente da Primeira Turma, ministro Cristiano Zanin, comunicou em abril o chefe da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), que a Casa só poderia barrar parte da ação.

O Supremo entendeu que a aplicação da prerrogativa seria válida somente em relação ao caso de Ramagem e especificamente aos crimes supostamente praticados depois da diplomação: dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.

Scalcon diz não ser possível classificar imediatamente a medida como inconstitucional. Para ela, se, por um lado, está claro que a imunidade parlamentar só abarca a figura do deputado, de outro, existe um debate a ser travado em relação aos crimes.

“Há uma discussão sobre quando se dá efetivamente a tentativa [de golpe], se ela começa já em 2022, que é a linha da PGR [Procuradoria-Geral da República], ou se essa tentativa só teria acontecido no 8 de janeiro”, afirma a professora.

A suspensão da ação pela Câmara segue a segunda linha. De acordo com o relator, deputado Alfredo Gaspar (União Brasil-AL), o crime de organização criminosa, ainda que supostamente iniciado em 2021, se prolonga no tempo para além da diplomação.

Essa descrição consta da própria denúncia da PGR: “A natureza estável e permanente da organização criminosa é evidente em sua ação progressiva e coordenada, que se iniciou em julho de 2021 e se estendeu até janeiro de 2023”.

Quanto aos delitos de golpe e abolição do Estado, a tese do deputado do União Brasil é que eles só poderiam ocorrer depois da posse de Lula (PT) e que a violência e grave ameaça teriam sido verificadas nos ataques de 8 de janeiro -portanto depois da diplomação.

“Se bem compreendi os termos da denúncia apresentada pelo Ministério Público, acusa-se o deputado Ramagem de ter praticado atos que tiveram como um de seus resultados o ocorrido em 8 de janeiro”, afirma Roger Leal, professor da Faculdade de Direito da USP.

“Isso parece insinuar, portanto, que também esses delitos se projetaram para além da diplomação. Não teriam, assim, se concluído em momento anterior. Essa linha permite, portanto, cogitar de alcance mais amplo da deliberação da Câmara.”

A questão é definir quando se iniciam e se encerram os atos executórios de um crime quando se fala em tentativa. Como os tipos penais foram criados recentemente, ainda há pouca base para esclarecer de forma definitiva a controvérsia.

Georges Abboud, professor da PUC-SP e do IDP, acredita que ampliar a proteção aos demais acusados na ação penal é um excesso da decisão da Câmara e que, “sem dúvida, seria violar a Constituição e a jurisprudência do Supremo”.

Diz também ser preciso discutir tanto o encadeamento dos eventos quanto a caracterização dos crimes. Afirma ainda que até mesmo o alcance da imunidade em casos de crimes contra a democracia pode ser objeto de debate

Segundo ele, pode haver um entendimento de que discursos golpistas e antidemocráticos não estão protegidos pela imunidade, justamente por ela ser uma garantia para o exercício da função parlamentar -e não para blindar a prática de crimes.

Álvaro Palma Jorge, da FGV Direito Rio, considera que a parte da acusação que trata dos atos de violência está muito caracterizada nos eventos de 8 de janeiro e que esse será um problema que o Supremo deverá enfrentar no futuro.

“Quando forem analisar o caso concreto, vai ser preciso entender se esses crimes se sustentam sem o 8 de janeiro na sua descrição”, diz o professor, que vê como inconstitucional apenas a extensão da imunidade parlamentar a corréus.

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