Ser Jornalista

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O Dia Mundial da Liberdade de Imprensa caiu no mesmo sábado em que Lady Gaga deu show histórico em Copacabana. Foi um sábado ensolarado no Rio de Janeiro, e diante de qualquer lojinha ou quiosque onde se passasse, só tocavam os hits da cantora. Sentada em um café, reparei num rapaz magricelo e sem camisa, que tocava no violão uma das músicas mais conhecidas, passando de bar em bar para atrair gorjetas dos clientes. Na sua boca, “Shallow Now” virava uma sequência rocambolesca de onomatopeias sem sentido, apenas seguindo o fio condutor da melodia.

Eu não estava no Rio para vibrar na areia lotada, mas para encontrar uma fonte. Diferentemente da multidão que chegou ao Rio e se mostrava animadíssima desde os dias anteriores, com correntes no pescoço, roupas de vinil coladas pelo corpo, transparências e lantejoulas, eu estava miserável pela coincidência de datas. Queria fazer meu trabalho em paz, complicado pelos engarrafamentos homéricos, as longas filas em qualquer café, o clima de carnaval no ar. Apesar de ter feito dezenas de ligações, a fonte, que mora no Rio, foi postergando e pediu para o papo ser no domingo, afinal. Não havia hospedagem a menos de mil reais por quarto quando precisei ficar um dia a mais, pois era o dia do dito show. Lição número um do jornalismo: quando uma fonte quer falar, você tem que estar à disposição. Uma tia generosa abriu sua casa pra me abrigar. Perdi o voo. Consegui espaço num dos últimos ônibus de domingo à noite, adentrando a madrugada. É da minha poltrona no bom e velho semi leito da 1001 que eu termino essa newsletter/coluna. Não bastasse o show, o colega da poltrona ao lado está vendo vídeos da Lady Gaga sem parar.

Penso que tenho certa inveja de quem vem despreocupado ao Rio para ver o show da Lady Gaga. Muitas vezes, ser jornalista é levar o mundo sobre os ombros, correr atrás da impossível tarefa de descobrir o que aconteceu, de fato, no mundo.

Penso que o rapaz aqui do lado não sabe, nem imagina, qual é o trabalho de um jornalista. E sei que temos falhado em explicar. Muita gente não sabe que existem profissionais que passam os dias, as noites, e muitas vezes o fim de semana ligando para fontes, lendo documentos, ouvindo relatos, destrinchando tabelas e tabelas de Excel e lendo arquivos em PDF para tentar chegar ao mais perto possível da verdade – essa palavra tão maltratada hoje em dia. Quase um palavrão.

Muita gente não sabe que é o que esses profissionais apuram e publicam que depois vai virar frase e efeito indignada na boca de algum apresentador de podcast ou influenciador em rede social; que vai virar meme, que vai ser repercutido em dezenas de programas de YouTube que não são mais que mesas-redondas de notícia onde comentaristas exaltados palpitam sobre algo que já foi publicado por algum jornalista, que passou horas apurando.

Não sabem que, ainda hoje, a matéria dos fatos reais mastigados na internet é fruto do trabalho jornalístico.

Que o jornalismo importa. É por isso que somos alvos de governos autoritários e de exércitos genocidas. No ano passado, o Comitê para Proteção dos Jornalistas (CPJ), registrou um número recorde de assassinatos de jornalistas desde a sua fundação há mais de 30 anos. Foram 124 jornalistas mortos fazendo o seu trabalho. O número tem uma só razão de ser: dois terços deles eram jornalistas palestinos tentando mostrar ao mundo o massacre que está ocorrendo, sozinhos. Israel proíbe qualquer jornalista não palestino de entrar e Gaza. E mata os que ali estão.

Do outro lado do mundo, passo o fim de semana lendo a mensagens frenéticas em grupos de WhatsApp latinoamericanos alertando para uma ameaça grave: o autocrata de El Salvador, Nayib Bukele, estaria prestes a prender jornalistas do site El Faro depois de mais um furo jornalístico excepcional, uma entrevista em que um membro da gangue Barrio 18 Revolucionários que contou sobre uma aliança que fizeram com “o ditador mais cool do mundo”. Carlos Dada, o fundador, pede que o mundo fique atento (se você quiser ajudar, siga o El Faro aqui). 

Isso significa que a verdade importa. E a verdade seguirá importando.

Neste Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, penso que, além do desafio de explicar às pessoas qual é o trabalho de um jornalista – e por que nos matam – a nós, que entregamos nossa vida para fundar e tocar veículos independentes, recaem outros desafios: como enfrentar a cada vez mais curta capacidade de atenção das pessoas? Como lidar com o triste fato que os textos longos que uma vez já foram a nata da nata do jornalismo independente têm atraído menos leitores? Como nos comunicar com diferentes gerações que querem se informar, mas não entendem os signos do jornalismo tradicional? Ou com aqueles que se cansaram de ler notícias ruins, os prenúncios do fim do mundo e reclamações intermináveis sobre o fascismo que avança, as chacinas que não acabam, os hábitos corrosivos que não são alterados e os mesmos velhos vícios do poder? Como narrar este mundo cada vez mais caótico?

Coube-nos, ainda, tentar desvendar como pode se sustentar o jornalismo sério, de qualidade, seja no formato que for, mas que não abre mão dos princípios e rigores da apuração e da inquietude intelectual na elaboração da pauta, ou seja, das perguntas que nos guiam? Com a redução do modelo tradicional de anúncios pelo duopólio formado por Meta e Google – que, juntos, ganham mais de 50% da verba publicitária global – cabe a nós inventar maneiras de manter organizações como a Pública de pé. 

Há uma enorme quantidade de maneiras de viver a vida. O rapaz do meu lado, por exemplo, já caiu num sono profundo e ronca desbragadamente enquanto eu dedilho no meu laptop com a luz baixa para não atrapalhar.  

Mas só se vive uma vez. 

É por isso que, neste Dia Mundial de Liberdade de Imprensa, agradeço e honro todos os jornalistas que estão ao meu lado nessa empreitada. Os jovens, os mais velhos, aqueles que perdem noites de sono tentando resolver problemas complexos. Aqueles que aprendem novas linguagens – de programação ao vídeo para redes e à linguagem do fundraising. Aqueles que pouco se importam com sustentabilidade. Aqueles que só querem fazer seu trabalho. Aqueles que erram. Aqueles que aprendem. É o compromisso que eu enxergo nos olhos deles que me faz ter a certeza: esta é uma boa luta. É a luta que faz valer a pena viver. 

Mesmo quando se é uma das poucas criaturas que foi ao Rio no último fim de semana e não viu o show da Lady Gaga.

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