Gil e Preta: a dor insuportável diante do sofrimento dos filhos

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Ofereço uma pausa no noticiário para falar de um assunto permanente e sempre urgente: a dor que toma conta de pais e mães diante do sofrimento de um filho.

Fui levada a reviver esse sentimento ao assistir o encontro de Gilberto Gil com a filha Preta no final da turnê “Tempo Rei” em São Paulo, no sábado passado. Gil, na plenitude, aos 82 anos; Preta, 50 anos, lutando há mais de dois anos contra um câncer de intestino.

Nem tenho coragem de pensar na possibilidade terrível da perda de um filho; já é o suficiente dizer o que a gente sente quando vê sofrer aquela criatura tão amada que você tem como missão proteger.

Na minha experiência, uma mistura de impotência e culpa por não poder transferir para si aquela dor junto com um desejo desesperado de aliviar o sofrimento tão injusto.

Por que meu filho e não eu?

A serenidade de Gil, que sabe falar com Deus, talvez dispense essa revolta, mas reconheci sua emoção ao receber a filha em sofrimento e recordei o orgulho que senti no pai pela força da sua menina em lidar com a própria dor.

Preta veio com o brilho do amor e a dignidade substantiva dos que lutam para sobreviver. Nem diante do choro do pai, perdeu a limpidez da voz e a precisão dos versos de “Drão”, a canção que fala de amor eterno na separação.

Tive a impressão de que em alguns momentos Preta pedia com o olhar que Gil entrasse no dueto, mas seguia levando a canção até que ele recuperasse o fôlego para cantar.

Aquela foi a “Drão” que Preta cantou para Gil no palco majestoso do pai. Um pai que é também um orixá, uma entidade, como ela sabe desde pequena.

Como muitos naquele estádio lotado na noite do sábado, chorei de mãos dadas com a minha filha. Senti uma gratidão imensa por aquele momento, por Gil e por Preta, e por tantos artistas que me acompanham sempre entre dores e amores. 

Lembrei de uma entrevista feita com ela pelo ator Lázaro Ramos, em que ele perguntou sobre o furor com que foi recebido seu primeiro álbum, em que Preta aparece nua na capa. Ela disse que não ligou e até comemorou quando seu pai disse que a foto era “bonita, mas desnecessária” – “Olha Gilberto Gil sendo careta!”, pensou – para mais tarde, depois de execrada publicamente pela ousadia, reinterpretar o gesto paterno como uma tentativa amorosa – e inútil – de proteção.

Mas, como diz a canção, o verdadeiro amor é vão.

Mãe desde os 20 anos, ela explicou: “É o que diz aquela letra do meu tio Caetano, ‘cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é’. A gente não tem como proteger nossos filhos de viver, de passar pelas experiências. Eu precisei ser muitas vezes atacada, agredida para ser o que sou hoje. E hoje eu não sou só eu. Eu sou muita gente que se identificou comigo, que se sentiu agredida junto comigo, se sentiu defendida comigo quando eu me levantei”.

Na mesma entrevista, Preta também comentou a “onda avassaladora de amor” que chegou a ela quando recebeu o diagnóstico, a traição cruel do ex-marido que a abandonou em uma cama de hospital e falou do futuro. “Quero viver muito o aqui e o agora, como meu pai canta, e eu quero que essa dança continue porque eu quero bailar até o fim”.

Preta Maria Gadelha Gil Moreira deixou o palco aplaudida de pé, com uma multidão gritando o seu nome como fez tantas vezes durante o show com o nome do pai, Gilberto Gil, o senhor do Tempo Rei, que já ensinou que não tem medo da morte, tem medo é de morrer.

O show seguiu dançante, com as bênçãos de todos os santos para o grão eterno do amor de Preta e Gil, de Gil e Drão, e para todos os que se amam de verdade nessa caminhadura, dura caminhada, pela vida afora.

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