Como lidar com o legado

Tenho certeza que você já ouviu – ou ainda vivencia – histórias sobre parques legados que viram uma pedra no sapato do gestor de TI: não podem ser desligados, nem atualizados. Máquinas com Windows 7 ainda em atividade, servidores com distribuições Linux tão antigas que não são suportadas por nenhuma outra aplicação, sistemas de mainframe de missão crítica que não podem ser aposentados. Por quanto tempo mais esse legado vai suportar?

Por “legado”, entenda-se não apenas sistemas antigos, mas também processos e infraestrutura que foram implementados em épocas passadas, muitas vezes sem padrões que facilitem a integração ou a modernização. O problema é que esse legado, em muitos casos, não pode ser desligado, ou migrado, sem um processo complexo.  

No entanto, o ritmo das inovações e as pressões do mercado exigem mudanças contínuas, o que coloca os executivos de TI diante de um dilema: como evoluir para tecnologias e arquiteturas mais modernas, sem simplesmente desligar aquilo que mantém a operação de pé? Em um contexto em que a competitividade depende cada vez mais de agilidade, resiliência e segurança, a tarefa de conciliar o passado e o futuro se transforma em um exercício complexo de equilíbrio.

A questão ganha ainda mais relevância diante da velocidade com que as demandas de negócios se alteram. Enquanto algumas áreas da empresa esperam que tudo “simplesmente funcione”, outros departamentos já cobram processos digitalizados, uso de Inteligência Artificial e adoção de plataformas de análise de dados em tempo real.  

Legado de TI: por que ainda existe?

Um dos motivos pelos quais o legado ainda permanece em muitas empresas é a alta dependência de determinados processos críticos. Em instituições financeiras, por exemplo, mainframes instalados há décadas são a espinha dorsal de operações de crédito, pagamentos e processamento de dados sensíveis.

A substituição imediata de sistemas tão robustos, mesmo que sejam antigos, não é simples. Muitos bancos enfrentam essa realidade, investindo em manutenção e suporte especializado para manter sistemas com linguagens e arquiteturas pouco conhecidas pelas novas gerações de profissionais.

Além disso, há o fator custo. A implementação de soluções que substituam o legado pode envolver a reescrita total de código, a integração com inúmeros outros sistemas externos, a adoção de uma nova infraestrutura de banco de dados, sem falar na capacitação das equipes e possíveis treinamentos de usuários.  

Esse processo, por si só, gera pressão sobre o orçamento e demanda estudos de viabilidade criteriosos. Em certos casos, apenas justificar o investimento necessário para substituir um sistema cuja “única falha” é ser antigo (mas que aparentemente funciona bem) pode ser um problema para a organização. E, mesmo quando o investimento é aprovado, ainda existe o risco de a mudança perturbar a rotina de negócios ou comprometer o atendimento ao cliente, sobretudo se a migração não for conduzida com cuidado.

É dentro desse cenário que o conceito de legado se expande: ele não é apenas um conjunto de softwares e máquinas antigas, mas a representação histórica de como o negócio funcionou ao longo do tempo, carregando dados valiosos e processos enraizados. Ao CIO, cabe a tarefa de reconhecer que, embora obsoleto em termos de tecnologia, o legado ainda tem um lugar fundamental na engrenagem corporativa.

Desafios e oportunidades na modernização gradual

Mesmo que o legado não possa ser simplesmente desligado, ele precisa coexistir com tecnologias mais novas, especialmente em áreas como análise preditiva, computação em nuvem e segurança avançada.  

O grande desafio é desenhar um roteiro de modernização que equilibre risco, custo e valor de negócio. Há empresas que optam por criar uma espécie de “camada intermediária”, oferecendo APIs ou serviços que “traduzem” a linguagem antiga em algo mais compatível com aplicações mais novas. Essa camada pode funcionar como um intermediário, permitindo que o legado seja consumido por plataformas modernas de e-commerce, aplicativos mobile ou soluções de análise de dados em tempo real, sem exigir, por ora, uma mudança radical em seus componentes internos.

Outra abordagem que vem ganhando espaço é a adoção de metodologias mais ágeis e incrementais para revisar partes específicas do sistema. Conhecida como “Strangler Pattern”, essa estratégia se baseia na substituição progressiva de funcionalidades, isolando módulos obsoletos e introduzindo novos serviços sempre que viável. Assim, evita-se o chamado “big bang”, ou seja, aquele momento em que se desliga tudo de uma vez e se liga o sistema novo, algo que pode trazer enormes riscos caso surjam falhas inesperadas.  

Com a modernização gradual, os times de desenvolvimento e operações conseguem aprender com cada etapa, identificando gargalos, refinando integrações e construindo um legado mais sólido para o futuro. É uma forma de dar à empresa a flexibilidade necessária sem colocar em risco a operação contínua.

Transformando o legado em inovação

Em vez de enxergar o legado apenas como um problema a ser resolvido, é possível encará-lo como base para processos mais modernos, sempre que ele for devidamente encapsulado, documentado e protegido. O primeiro passo é realizar um inventário detalhado, identificando quais partes do sistema são críticas e não podem ser interrompidas, quais podem ser adaptadas sem grande impacto e quais já poderiam, em tese, ser desativadas ou substituídas. Esse mapeamento funciona como um “raio-x” das operações, mostrando onde cada departamento depende de sistemas antigos e quais são as eventuais vulnerabilidades, inclusive no que diz respeito a segurança e conformidade regulatória.

Com o panorama claro, torna-se mais simples priorizar investimentos. Cada empresa, em cada setor, vai detectar um ponto de maior retorno estratégico ao renovar o legado. Em alguns casos, uma migração “lift and shift” para a nuvem pode resolver problemas de escalabilidade e redundância, ainda que o código original não seja modificado. Em outros, pode ser essencial reescrever módulos inteiros para torná-los compatíveis com APIs modernas.

Em última análise, lidar com o legado que não pode ser simplesmente substituído não se trata apenas de tecnologia, mas de transformação organizacional e estratégia de negócio. Com um roteiro bem definido, atenção aos riscos e uma postura que valorize tanto a estabilidade quanto a inovação, o legado pode gradualmente ceder espaço para soluções mais modernas, sem que isso represente uma ruptura brusca ou um risco inaceitável para a operação. A modernização do legado é viável quando conduzida de forma progressiva, planejada e apoiada pelos líderes de negócio, abrindo caminho para a empresa evoluir em um ritmo sustentável e competitivo, mesmo nos ambientes mais complexos.

*Por Marcelo Mathias Cereto, head da unidade de negócio Selbetti IT Solutions na Selbetti Tecnologia.

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