Harvard enfrenta Trump

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Demorou, mas finalmente assistimos a uma instituição de peso enfrentar os abusos do governo americano. Na semana passada, a Universidade de Harvard, a mais rica e poderosa do mundo, decidiu não apenas desobedecer às ordens tresloucadas de Donald Trump, mas também processá-lo judicialmente.

Citando “falha em combater o antisemitismo no campus”, o governo havia feito uma série de exigências que incluíam fazer auditoria de todos os professores para verificar casos de plágio, dedurar para o governo todos os estudantes internacionais e aceitar que houvesse um bedel externo encarregado de garantir “diversidade de pontos de vista”. Com a recusa, o governo foi para cima: estabeleceu um congelamento em 2,2 bilhões em repasses para pesquisas e iniciou investigações contra a universidade. Ameaça, ainda, retirar o certificado de empresa sem fins de lucro e proibir que a universidade aceite estudantes internacionais, que dependem de vistos federais.

São ações absolutamente chocantes, dignas de países que descambam para ditaduras aqui no nosso continente, como ocorreu na Venezuela, onde o chavismo levou anos para controlar as universidades que serviam de resistência ao endurecimento do regime. Trump, que já avisou que quer romper a Constituição e ser presidente por um terceiro mandato, adianta-se à resistência democrática que costuma vir dos estudantes.

Na demanda judicial, a direção de Harvard exige o descongelamento dos repasses e acusa o governo de buscar “ganhar o controle da tomada de decisões acadêmicas em Harvard”. Antes de fazer reprimendas, o governo federal deveria, segundo a lei, trabalhar junto com a universidade e não contra ela. O presidente da instituição afirmou em comunicado aos alunos que acatar a ordem levaria a um controle “sem precedentes e inadequado” que teria consequências “severas e duradouras”.

Mas ele vai além, relembrando que, como judeu, sabe da importância de combater o antissemitismo, mas relembra, também, que “ninguém em nossa comunidade deve sofrer preconceito ou intolerância”. Relembrando isso, o presidente conta que estabeleceu, ao mesmo tempo, uma Força-Tarefa de Combate ao Antissemitismo e ao Preconceito Anti-Israel e também uma Força-Tarefa para Combater o Preconceito Anti-Muçulmano, Anti-Árabe e Anti-Palestino. Os resultados são “dolorosos”, escreve.

É digno de nota que uma universidade como Harvard – que em 2024, em meio a protestos anti-genocídio, sofreu tanto abuso e assédio de grupos judaicos de extrema-direita que forçou a sua última reitora, a acadêmica Claudine Gay, mulher negra com carreira de enorme prestígio, a pedir demissão do cargo mais cobiçado da academia americana – tenha se colocado contra a maré alucinada, censora e protofascista que tem tomado conta das universidades americanas.

Quando eu estive em Harvard pela última vez, no ano passado, o que se via no campus era exatamente o oposto do que acusa o presidente Trump. Ao redor da Harvard Square, principal praça de convívio da comunidade, um carro branco rodeava, carregando sobre o teto, uma enorme placa com o rosto e o nome de estudantes de origem árabe que estavam envolvidos em protestos. Era época em que esses mesmos alunos entraram na lista de pessoas indesejadas em empresas listadas no “top 100” da Forbes, garantindo que jamais seriam contratados por elas. Outros foram demitidos de seus empregos apenas por participar de protestos denunciando o genocídio dos palestinos pelas mãos do Estado de Israel. Eu sabia disso, mas, mesmo assim, aquela visão do carro fazendo “doxxing” desses estudantes em tempo real me causou uma vertigem, seus rostos jovens sendo marcados como um X tremendo na testa por falar apenas a verdade.

Em que mundo denunciar um genocídio que acontece diante de nossos olhos deve ser proibido? Em que mundo ele deve ser proibido com apoio de instituições acadêmicas que deveriam ser o epicentro do pensamento crítico?

Quando eu escrevo esta newsletter, mais de 50 mil palestinos foram assassinados, um terço deles crianças, na sanha de vingança de Israel com amplo financiamento, armas e apoio moral dos Estados Unidos. Os números são subestimados, de acordo com um estudo da revista Lancet; no fim do ano passado, os cientistas já falavam em quase 65 mil mortos.

Qual é o imperativo moral de uma universidade diante de uma realidade dessas? E qual é o papel de uma universidade diante de um governo autoritário?

Harvard foi pelo caminho oposto de outras Universidades. Em 10 de março, o governo Trump enviou cartas a 60 faculdades e universidades que seu governo está investigando por suposto antissemitismo, ameaçando cortes de financiamento.

Até aqui, o caso mais notório foi o da Universidade de Columbia, que se ajoelhou diante da ameaça. Aceitou proibir uso de máscaras nos campus, permitir a entrada da polícia para realizar prisões e ainda eliminou a liberdade acadêmica do Departamento de Estudos do Oriente Médio, Sul da Ásia e África (MESAAS), colocando sob a administração central em vez dos professores e alunos.

Por lá, já havia uma grande campanha de professores judeus que aparentemente apoiam a política de extermínio do estado israelense. Apenas um mês antes, eles e mais de duzentos docentes haviam assinado uma carta elencando muitas das medidas exigidas depois pelo governo Trump. Entre elas, queriam que Columbia adotasse a definição de antissemitismo da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto, para quem atacar o Estado de Israel é um ataque a todos os judeus.

É mais ou menos o “Brasil, ame-ou deixe-o” da ditadura de 1964. A carta dos acadêmicos de Columbia traz ainda linguagem que vem claramente da direita radical. Em outra carta anterior, por exemplo, os mesmos professores denunciavam a “doutrinação antiocendental” no campus.

A sociedade americana já vive, assim, uma das piores consequências da decaída autoritária, algo que também conhecemos bem aqui na América Latina: a divisão interna, a vigilância por parte de quem ganha vantagens do regime, a ruptura de comunidades que antes trabalhavam unidas e a sedução do micro-poder. Como se dizia aqui durante a ditadura, o problema não são os generais, mas o empoderamento do guarda da esquina.

Mas é óbvio que Donald Trump não poderia estar menos preocupado com o antissemitismo ou o bem-estar da comunidade judaica; ele quer apenas um pretexto, como mencionei acima, para controlar o livre debate e a organização política dentro dos campi, porque são justamente locais de resistência democrática por essência.

Há um enorme vão entre as posturas de Columbia e de Harvard – que, com seu fundo patrimonial de US$ 53 bilhões, tem o que é chamado de “fuck you money”, o tipo de dinheiro que te permite mandar qualquer um a merda. E a maioria das instituições de ensino estão no meio do caminho. No dia 22 de abril, mais de 400 presidentes de universidades responderam ao assalto trumpista com mais uma carta denunciando “o abuso de poder e interferência política sem precedentes do governo federal que ameaçam a educação superior americana”.

Temo, entretanto, que a ida e vinda de cartas seja pouco, e que a sociedade americana segue iludida quanto à vitalidade do seu sistema, aguardando que a Justiça vá responder a todos os abusos do governo. Como resposta, no dia seguinte, Donald Trump emitiu mais uma de suas Ordens Executivas, exigindo que elas revelem todo financiamento internacional, uma exigência que já tinha sido feita pelo Departamento de Educação para a Universidade de Harvard. Como sabemos, o primeiro passo para se destruir um sistema democrático é a persistência. Com o tempo, a ditadura assusta, coopta, seduz e compra parte das forças que estabelecem os tais “pesos de contrapesos”. Pela rapidez estonteante de Trump, não é exagero predizer que já estejamos assistindo ao começo do fim da Constituição americana. Nada vai ser como antes.

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