Precisamos de mais Master Chief e menos T-800

Todo mundo está fazendo as suas apostas no que tange à Inteligência Artificial (IA). Afinal, ainda é muito cedo para afirmarmos qual é o limite para esta tecnologia. Portanto, não vou me atrever neste sentido. Mas quero falar de precipitação, pois não se trata de brincar de futurismo e, sim, de analisar o que faz sentido para a realidade de hoje. E vou me restringir ao contexto das vendas B2B, para ser bem específico.

Nos últimos dias me deparei com duas propostas completamente diferentes no que tange a aplicação da IA em prospecção de clientes e vendas B2B. 

No South Summit Brazil, realizado em Porto Alegre, de 9 a 11 de abril, ouvi um empresário alemão a respeito da sua startup, um SaaS que transcreve reuniões e usa a IA como um “coach de vendas” virtual para as equipes. O seu software pode ser parametrizado para aplicar melhores práticas e técnicas, como BANT ou Spin Selling, por exemplo, orientando vendedores para conversas mais produtivas com os clientes. Ou seja, é basicamente a promessa de um “playbook vivo”, que reage ao comportamento do vendedor, ajudando-o a corrigir as suas inconsistências a partir de retrospectivas.

Por outro lado, tenho acompanhado uma campanha de marketing de uma famosa empresa de software de prospecção brasileira, com uma promessa completamente diferente, porém igualmente arrojada: uma IA que faz ligações de prospecção automatizadas, personalizadas e em grande escala. Segundo o CEO da empresa, o seu robô de prospecção faz 400 ligações por hora e agenda 1 reunião qualificada a cada 20 minutos (3 reuniões por hora, portanto).

Quando vi essa campanha, me lembrei da palestra do alemão, que afirmou ter aberto a sua startup no Brasil, porque na Alemanha tudo é muito mais lento e o brasileiro tem um comportamento de vendas muito mais agressivo que o europeu ou o japonês. Tanto é que 30% do faturamento da empresa vem daqui. Sim, o brasileiro é agressivo e, por vezes, sem noção também. Lidemos com isso.

O fetiche da “demanda infinita”

A promessa sedutora da IA em vendas está no volume: robôs que fazem 400 ligações por hora. Em teoria, isso representa 3.200 ligações por dia, considerando uma jornada de 8 horas. Ao longo de 22 dias úteis no mês, esse ritmo chega a 70.400 ligações mensais.

Mas o que isso entrega? Pense neste cenário: se essas 70.400 ligações forem divididas em cadências de 10 tentativas por cliente, você estaria tentando abordar 7.040 clientes potenciais diferentes em um único mês.

Com uma taxa de conversão de 0,75%, isso representa apenas 53 reuniões qualificadas por mês.

Ou seja, esgotar 7 mil nomes por mês para conseguir pouco mais de 50 reuniões é o retrato perfeito da ineficiência. Nenhum nicho B2B relevante suporta esse nível de desgaste por muito tempo.

Estamos falando de mais de 84 mil clientes potenciais únicos. A sua empresa tem mesmo uma lista qualificada deste tamanho? Por quanto tempo um big data pode sustentar esse tipo de abordagem superlativa (para não chamar de insana)? Tem uma coisa que eu digo para as pessoas desde o tempo em que as listas de clientes potenciais eram vendidas em CDs: um dia toda lista termina. Então cuide bem da sua lista!

O custo de insistir sem inteligência

Outra campanha de marketing ainda mais bizarra que eu vi outro dia, foi de uma empresa que dizia “Não contrate mais SDRs humanos”. OK, vamos seguir esta lógica. 

Eu não sou um adepto de estruturas de pré-vendas baseadas em SDRs, especialmente para vendas complexas. Entendo que o modelo está desgastado e precisa ser revisto. Mas isso não vem ao caso aqui.

Em um negócio aderente ao modelo de prospecção da Cold Call 2.0, um SDR bem treinado pode operar com taxas de conversão de 8% a 12%, no que diz respeito ao agendamento de reuniões qualificadas.

Portanto, no pior cenário, um SDR com 8% de conversão precisa de 663 clientes potenciais únicos para gerar as mesmas 53 reuniões mensais, fazendo 3 ligações por cliente em uma lista de 30 clientes por dia. Embora a lista para um ano ainda seja grande (7.956 clientes potenciais únicos), ainda é factível para certos mercados, como de SaaS, por exemplo.

Logo, ainda que o SDR humano custe mais, no contexto certo e devidamente capacitado, a sua relação custo x benefício será superior. Então este modelo baseado na IA, que se vende como hiper produtivo é, na verdade, uma forma sofisticada de insistência em escala industrial. Escalar o erro não é estratégia — é burrice.

A verdadeira força da IA está nos bastidores

Agora imagine o seguinte cenário: se aquele mesmo SDR que hoje performa com 8% de conversão for capacitado para usar a IA como uma ferramenta estratégica, o quanto ele pode evoluir e aumentar a sua taxa de conversão?

A IA pode ajudar em uma série de atividades que antecedem o contato com o cliente potencial, tais como:

Análise de fit do cliente ao ICP (Ideal Customer Profile) aos produtos e serviços da empresa.

Priorização dos leads na Pirâmide de Prospecção, conforme o ICP Fit e estágio de atendimento.

Preparação de mensagens e roteiros de reunião altamente personalizados para cada cliente.

Já após o contato, a IA pode ajudar em tarefas como:

Analisar e manejar objeções dos clientes, com base em respostas e mensagens recebidas.

Fazer a retrospectiva de reuniões, observando lacunas na abordagem e indicando melhores práticas.

Mapear o perfil do interlocutor e descobrir, como conduzir as próximas conversas para reduzir objeções e aumentar o engajamento.

Ou seja, a contribuição real da IA para vendas B2B está naquilo que poucos valorizam: entendimento profundo, retrospecto e melhoria de performance. Usar a IA para atacar mais clientes é uma ilusão baseada em números exagerados que não levam a lugar nenhum.

A IA deve atuar como radar e retrovisor: analisando conversas, identificando padrões de perda, sugerindo ajustes em abordagens e antecipando objeções. IA eficaz não corre atrás de cliente. Ela te mostra por que você está ganhando ou perdendo o jogo, gerando atalhos que seriam humanamente impossíveis de encontrar.

Contrate humanos que saibam usar a IA

Eu gosto muito de usar o seriado HALO (baseado no videogame homônimo da Microsoft) como exemplo da integração entre humanos e IA para aumento da produtividade. Master Chief, protagonista da história, é o líder de um grupo de super soldados, os Spartans. Por conta de suas habilidades, ele é escolhido para receber um implante da IA Cortana (ela mesma), a qual passará a ser a sua assistente de campo.

Com todo o seu histórico de treinamento, experiência de combate e habilidades técnicas fora do comum, Master Chief já é um soldado dificílimo de enfrentar em situações normais, mesmo sem a poderosa armadura dos Spartans. Porém, quando ele passa a entender que a Cortana é uma aliada e não uma substituta, Chief muda completamente de nível, adquirindo uma consciência situacional sem precedentes. Ele passa a antecipar movimentos, tomando decisões melhores e mais rápido com ajuda da IA.

Em um duelo improvável, Master Chief seria o humano ideal para enfrentar um T-800 — não por ser mais forte, mas por estar melhor assistido. Para quem não lembra, o T-800 é o exterminador interpretado por Arnold Schwarzenegger na franquia “O Exterminador do Futuro”: um ciborgue programado para matar, incansável, preciso e sem qualquer capacidade de julgamento estratégico. Ele representa a IA como força bruta, sem alma, sem adaptação. Chief, com Cortana, representa o contrário: inteligência tática, leitura de contexto e evolução contínua.

Eu não sei se um dia os humanos vão usar microchips implantados com uma IA como a Cortana. Na verdade, eu acho isso um pouco assustador. Mas contar com uma IA como sua “ala” ou “co-piloto” no computador e no celular já é um ganho brutal para qualquer vendedor ou SDR.

Então, ao invés de cair no conto da “demanda infinita”, invista em pessoas que sabem usar a IA a seu favor. Afinal, HALO se passa no século 26. Ainda estamos bem longe daquela realidade. Mas a IA generativa já está ao nosso alcance — e pode mudar radicalmente a forma como sua empresa vende e prospecta, sem apelar para a insistência sem noção do T-800.

*Por Marcelo Morem, fundador e diretor da Mextres.

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