Como habitat de onças-pintadas do ‘tamanho da Inglaterra’ virou plantação de soja e pasto


Uma única fazenda criadora de gado desmatou cerca de 1 mil hectares, de forma não autorizada, em uma área protegida por lei no Mato Grosso. Como são predadores de topo, onças-pintadas possuem um papel ecológico único
Getty Images via BBC
Em 2022 e 2023, autoridades ambientais identificaram que uma única fazenda criadora de gado desmatou cerca de 1 mil hectares (equivalente a mais de seis vezes o tamanho do Parque do Ibirapuera, em São Paulo), de forma não autorizada, em uma área protegida por lei, no Mato Grosso.
Os documentos que registraram as infrações cometidas pela empresa falam de dano à vegetação, o que gerou multas e embargo à empresa responsável. Mas casos como esse contêm um outro dano pouco contabilizado: o prejuízo à biodiversidade.
A fazenda está localizada na Área de Proteção Ambiental (APA) Meandros do Araguaia, no Mato Grosso, território conhecido da onça pintada, um dos maiores símbolos da biodiversidade brasileira. Um dos objetivos da unidade de conservação é justamente proteger a espécie – conforme consta do decreto de sua criação, de 1998.
Ao menos 477 infrações ambientais foram registradas pelo ICMBio nos últimos dez anos nesta mesma unidade de conservação, cometidas por diferentes infratores e que somam mais de R$ 37 milhões em multas, segundo levantamento feito pela BBC News Brasil nos dados abertos da instituição.
As violações são um exemplo de um fenômeno maior, de ameaça ao habitat desses animais causado principalmente pelo avanço da agropecuária e derrubada das florestas, em sua maior parte de forma ilegal, com consequências para várias outras espécies.
Um estudo inédito produzido pela ONG Global Witness e obtido pela reportagem identificou que as onças pintadas já perderam 27 milhões de hectares de vegetação nativa nos estados do Pará e do Mato Grosso, uma área que é maior do que a soma dos territórios da Inglaterra, da Escócia e do País de Gales.
Esta área corresponde ao total de áreas de pasto e agricultura que havia nesses dois estados em 2023 e que estão sobrepostas ao mapa de habitat da espécie. Na prática, isto significa que esses animais podem ter sido deslocados ou mortos.
O Código Florestal determina que toda fazenda deve manter área com cobertura de vegetação nativa em diferentes proporções, a depender na região: na Amazônia, este porcentual é de 80%; no Cerrado, 35%. Mas, segundo o levantamento nos dois estados estudados, 89% da perda de vegetação entre 2014 e 2023 aconteceu sem as autorizações legais devidas.
“A destruição que vimos no Pará e em Mato Grosso não aconteceu por acaso. É resultado da fiscalização insuficiente de um sistema legal que, com frequência, permite que corporações poderosas fiquem impunes”, diz Alexandria Reid, líder da campanha de Florestas da Global Witness.
Para ela, embora existam leis para prevenir o desmatamento, a aplicação da legislação carece de recursos. “Regulamentações frágeis das cadeias de fornecimento significam que fornecedores que desmatam ainda podem contar com grandes empresas para continuar comprando, independentemente dos danos. Com penalidades baixas e lucros altos, as empresas ainda se beneficiam da destruição florestal.”
Um animal ‘quase ameaçado’ de extinção
A União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), grupo que reúne governos, agências e organizações não-governamentais, classifica a onça pintada como uma espécie quase ameaçada, ou seja, que está perto de estar ameaçada de extinção e pode se enquadrar nesta categoria em um futuro próximo. O animal é considerado pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) como um símbolo brasileiro da conservação da biodiversidade.
Um relatório do ICMBio projetou que a espécie deve ter sua população reduzida em mais de 30% até 2031. O documento atribui a queda às atividades agrícolas, principalmente cultivo da soja e pecuária, e também ao que chama de “efeitos secundários”, como conflitos, caça, atropelamentos e comércio ilegal de partes do animal.
Mas o que justifica a preocupação especificamente com esta espécie? Especialistas apontam uma série de fatores.
“Como são predadores de topo e o maior predador terrestre do nosso país, elas possuem um papel ecológico único. Predadores de topo são muito importantes para o controle das populações de suas presas e, através desse controle, influenciam todo o ecossistema”, explica a coordenadora científica do Onçafari, Marcella Pônzio. A organização atua na defesa da biodiversidade brasileira.
Quando há a extinção de predadores de topo em um local, segundo Pônzio, muitas populações de suas presas, como herbívoros, podem passar por um processo de explosão populacional. Se aumenta a população de herbívoros, algumas espécies de plantas são mais prejudicadas. É um fenômeno conhecido como cascata trófica. Os efeitos não se limitam a consequências populacionais: pode afetar também a qualidade da água, o curso dos rios e a compactação do solo, explica ela.
Outro valor de estudar essa espécie é que as onças são animais que estão quase sempre em florestas e têm aversão a outros ambientes, portanto sofrem mais com o impacto do desmatamento.
“Onças pintadas são organismos especialmente sensíveis à perda de habitat nativo, seja o desmatamento de florestas ou outros biomas brasileiros. Isso acontece porque elas precisam de áreas nativas para se refugiar e necessitam de uma grande base de presas, ou seja, um grande volume e diversidade de animais para se alimentarem”, diz o diretor de conservação e operações da mesma organização, João Vasconcellos de Almeida.
Fernando Torquato, coordenador do Programa de Conservação do Brasil da Panthera, organização global de conservação de felinos selvagens, destaca ainda que políticas públicas que garantam a proteção dessa espécie acabam garantindo a proteção da biodiversidade como um todo, já que seus requerimentos de habitat são maiores do que o de outros vertebrados.
‘É o bem comum sendo revertido em bem privado’
Um estudo publicado em 2021 que estimou, pela primeira vez, o número de onças-pintadas mortas ou deslocadas de seu território na Amazônia colocou os estados de Mato Grosso e Pará no topo da lista.
Os autores do artigo estimaram que 1,4 mil onças foram mortas ou deslocadas entre 2016 e 2019. “Imagine uma cidade, como São Paulo, remover quase 2% de sua população todos os anos. É uma taxa absurda”, diz Torquato, que é um dos autores da pesquisa.
O pesquisador diz ainda que o desmatamento é a primeira etapa do processo, que inclui mais prejuízos a esses animais. Ao fragmentar as populações nativas e reduzir a quantidade de presas, é comum que as onças passem a caçar os bois. Isso pode estimular um conflito com os fazendeiros e a caça desses animais. Com a caça, há também o risco de que partes do animal sejam comercializadas no mercado ilegal, dentro e fora do país. “É uma ameaça que vem em combo”.
Por isso, explica, os números da pesquisa são bastante conservadores, já que não consideram quantos animais foram mortos por retaliação de fazendeiros, para caça para fins de tráfico de animais, dentre outros casos conhecidos.
Torquato diz que a ideia do monitoramento é ver o problema do desmatamento por outro ângulo. “É um mesmo problema, mas apresentado de outra perspectiva. Muitas vezes a sociedade não se atenta sobre o que representa a remoção de uma floresta. O que perdemos, em termos de serviço ecossistêmico, em cada hectare removido? É o bem comum sendo revertido em bem privado.”
Empresa que desmatou área protegida foi fornecedora indireta da JBS, diz relatório
O auto de infração do ICMBio identifica que o desmatamento citado no início desta reportagem aconteceu na Fazenda Canoeiro, em Cocalinho-MT. O auto de infração foi feito em nome da empresa MFX Investimentos e Participações Ltda.
A operação de fiscalização aconteceu em agosto de 2022. “Um dos maiores problemas ambientais enfrentados pela equipe técnica da APA Meandros do Araguaia está relacionada à perda de biodiversidade provocada por processos de corte raso, degradação ou uso do fogo, ocorridos ilegalmente em áreas de vegetação nativa”, diz o documento.
O relatório da Global Witness afirma que a fazenda autuada foi uma fornecedora indireta de gado da JBS, maior empresa de processamento de carne do mundo, entre 2019 e 2022. Segundo a organização, esta fazenda transportou gado para uma outra unidade do grupo, que então vendeu para fornecedoras diretas da empresa em ao menos duas ocasiões.
“A transferência de gado criado em terras desmatadas para fazendas limpas é conhecido como lavagem de gado. Essa é uma das formas pelas quais produtos pecuários ligados ao desmatamento podem entrar no mercado, explorando uma brecha nos sistemas de monitoramento da JBS, que em sua maioria rastreiam fornecedores diretos, mas ignoram os indiretos ao longo da cadeia de suprimentos”, explica a organização.
Dados compilados pela organização afirmam ainda que 75% das fazendas fornecedoras de gado da JBS que estão no território das onças pintadas tinham menos área de vegetação preservada do que a legislação requer.
Em nota, a JBS disse que a MFX Investimentos e Participações nunca forneceu bovinos para a empresa, mas não comentou especificamente a informação de que a empresa seria uma fornecedora indireta.
A BBC News Brasil não conseguiu contato com a MFX. A reportagem usou os e-mails e telefone dos representantes da empresa que aparecem no auto de infração do ICMBio, mas não obteve respostas. O espaço segue aberto para manifestação.
Unidades de conservação são suficientes para proteger a biodiversidade?
Há hoje, no Brasil, cerca de 2,7 mil unidades de conservação (UC), tanto de proteção integral como de uso sustentável, que somam 1,5 milhão de hectares, ou 18% do território brasileiro. Como no caso da APA Meandros do Araguaia, citada no início desta reportagem, um dos principais objetivos destes espaços é justamente a proteção da biodiversidade.
Só que diversos estudos têm apontado que as UCs, de forma isolada, não resolvem o problema. Um dos desafios, segundo especialistas, é que a preservação das espécies depende da existência de mecanismos que consigam integrar essas áreas.
As onças pintadas e outros animais de maior porte precisam de grandes extensões territoriais para conseguir alimento. As estimativas de área de vida desses animais variam muito e podem ultrapassar os 1 mil quilômetros quadrados, a depender da disponibilidade de presas e habitat adequado, segundo especialistas.
Se essas áreas estão fragmentadas, elas acabam precisando atravessar estradas e plantações criadas por humanos em busca de sobrevivência, muitas vezes chegando às cidades e fazendas.
Um artigo publicado em fevereiro de 2023 no periódico Communications Biology mostrou que as áreas na região amazônica que contêm as maiores populações da espécie são justamente as que enfrentam mais ameaças da ação humana.
A pesquisa aponta que o desmatamento, a expansão agrícola e os incêndios são comuns em áreas protegidas que abrigam as maiores populações de onças pintadas, especialmente nas zonas de amortecimento (áreas no entorno dessas regiões)
Um outro artigo, publicado por autores brasileiros em 2014 na revista Landscape Ecology, já apontava que “a maioria das grandes reservas no Brasil não mantém populações viáveis de onças-pintadas para garantir a sobrevivência da espécie a longo prazo”.
Corredor ecológico que integra áreas protegidas é aposta
Uma das propostas apresentadas para integrar essas áreas é a criação de corredores ecológicos, áreas que conectam fragmentos de florestas ou áreas protegidas que foram separadas pela ação humana. Eles permitem, por exemplo, melhor deslocamento de animais e aumento da cobertura vegetal, dentre outras vantagens.
No ano passado, procuradores da república criaram um grupo de trabalho para discutir a criação de um desses corredores, ao longo da bacia Araguaia-Tocantins. A área abrange os estados de Goiás, Mato Grosso, Tocantins, Pará e Maranhão, que ajudaria na preservação das onças-pintadas.
O desafio é equilibrar as necessidades com as atividades econômicas na região: a área possui quase três mil quilômetros de extensão, abrange os biomas do Cerrado e da Amazônia e agrega 119 cidades, onde vivem cerca de 4 milhões de pessoas.
O procurador da república Guilherme Tavares, que coordena o grupo, disse à BBC News Brasil que a região produz 5 milhões de toneladas de soja ao ano e possui 15 milhões de cabeça de gado. “Nossa ideia de corredor é produzir uma agenda nos órgãos e colocar o Araguaia nessa agenda, seja dos órgãos ambientais, políticos, da academia, com produção de dados e diagnóstico para promover ações.”
Corredor é viável?
Um estudo coordenado pela professora de economia da USP, Andrea Lucchesi, identificou que, embora exista um alto custo financeiro para a criação do corredor no Araguaia, os ganhos podem ser ainda maiores.
Estima-se que esses benefícios ultrapassem 100 bilhões de reais ao longo de cinquenta anos, além da geração de até 38 mil novos empregos diretos. Publicado em 2024 na revista científica Land Use Policy, o artigo avalia a possibilidade de restaurar 931 hectares de áreas localizadas na Amazônia e no Cerrado, ao longo do Araguaia e parte do Rio Tocantins.
O estudo leva em conta o impacto financeiro da emissão de CO2, que poderia ser capturado pelas árvores das áreas restauradas, e as milhões de toneladas de erosão do solo que poderiam ser evitadas. Também inclui o ganho financeiro com a extração sustentável de recursos dessas terras.
“Conseguimos saber não apenas quanto o proprietário rural vai ganhar ao vender açaí, por exemplo, mas também quanto vale, em termos monetários, ter reflorestado aquela área, considerando a captura de CO2 e a redução na erosão”, explica Lucchesi.
A pesquisa envolveu a criação de diferentes modelos de restauração ecológica, adaptados a cada bioma. Até as espécies que deveriam ser plantadas em cada região foram analisadas. “Pensamos em modelos que fossem rentáveis, como a exploração de madeira ou produtos como açaí, frutas, castanhas e mandioca. O objetivo é convencer os proprietários a aderirem”, afirma a especialista, destacando que o Código Florestal permite, com limitações, a exploração econômica de espécies nativas.
Lucchesi ressalta que a única forma de garantir a sustentabilidade é através do diálogo com as diversas comunidades que vivem ao longo do corredor. “É preciso estabelecer um relacionamento de confiança, mostrando os benefícios para o meio ambiente e o clima. Mas também é fundamental apresentar argumentos financeiros sólidos. Não dá para simplesmente desapropriar milhares de propriedades rurais”, conclui.
Gráficos feitos por Caroline Souza, Equipe de Jornalismo Visual da BBC Brasil.
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