Enfermeira diz ter ficado tetraplégica por 2 anos por causa de doença autoimune

Imagine sair de casa para trabalhar e, poucas horas depois, perder os movimentos das pernas após sentir uma dor na panturrilha direita. Foi assim que a vida da enfermeira paulistana Suely Rezende mudou radicalmente, quando ela tinha 50 anos. Mesmo sendo profissional da área da saúde, ela não desconfiou que pudesse ter neuromielite óptica (NMO), doença autoimune rara que ataca o sistema nervoso central. Os médicos que a atenderam no hospital onde trabalhava também não.

O primeiro surto, em 2006, veio de forma avassaladora. No período de 14 horas, Rezende perdeu a sensibilidade da cintura para baixo e a princípio foi diagnosticada com mielite transversa, que os médicos atribuíram ao vírus da hepatite C. Durante um ano, a enfermeira recebeu o tratamento para essa condição.

O diagnóstico correto demorou um ano para ser confirmado, a partir de um exame de sangue chamado anticorpo anti-aquaporina 4 (anti-AQP4), que, na época, foi enviado para o Japão.

Durante esse período, a enfermeira passou mais tempo no hospital do que em casa, sofrendo crises recorrentes e submetendo-se a tratamentos experimentais. Sua condição começou a melhorar com a confirmação da NMO e o início da pulsoterapia, que consiste na administração de altas doses de medicamentos por via intravenosa, geralmente corticoides, durante três a cinco dias.

Rezende voltou a andar com dificuldade e chegou a retornar ao trabalho. No entanto, em 2010, um novo surto a deixou tetraplégica. Foram dois anos dependendo completamente de terceiros.

 
Foi horrível. Eu não conseguia virar o pescoço mais do que 45 graus, nem coçar a ponta do nariz. O pior de tudo é que, além de eu ficar tetraplégica, perdi o controle dos esfíncteres e precisava usar fralda.” — Suely Rezende, enfermeira.
 

Por meio da plasmaférese, um tratamento que substitui o plasma do sangue para eliminar os anticorpos nocivos, lentamente a enfermeira recuperou os movimentos e iniciou um processo de reabilitação com terapeutas, fisioterapeutas e psicólogos. Foi nesse contexto que o esporte entrou em sua vida.

“Eu estava muito revoltada, e a psicóloga falou pra mim: ‘Vamos procurar alguma coisa que te traga prazer e faça sentido viver. Mesmo você nessa cadeira de rodas, você vai ter uma qualidade de sobrevida’”, conta.

Por recomendação da profissional, Rezende procurou o Clube dos Paraplégicos de São Paulo e, dentre as modalidades oferecidas, se identificou com a bocha paralímpica. A princípio, começou a praticar o esporte como reabilitação. No entanto, incentivada pelo técnico, chegou a ser paratleta de alto rendimento, tornou-se medalhista e competiu por seis anos.

Impedida de se dedicar à atividade durante a pandemia, a enfermeira encontrou na dança uma nova paixão. Hoje, pratica três vertentes (dança contemporânea, do ventre e esportiva) na cadeira de rodas e tem até um nome artístico: Suh Rezende.

Aos 69 anos e convivendo com a NMO há 19, a enfermeira desafia as estatísticas. “Eu me considero um milagre. Depois do diagnóstico, os médicos diziam que minha expectativa de vida era de no máximo dez anos. Se eu sobrevivesse mais de cinco, podia perder a visão, a fala e os movimentos e ficar acamada”, diz.

Para ela, a chave de sua longevidade foi a fé e a busca ativa por novos caminhos: “Eu não me conformei com o diagnóstico”, afirma. Seu lema de vida resume sua trajetória: “Persistir para existir. Ao término de cada crise, encaro a realidade com fé e esperança, buscando um bem viver para o meu novo tempo”.

O que é a NMO?

A NMO ocorre quando o sistema imunológico do próprio paciente ataca as células do sistema nervoso central, afetando principalmente o nervo óptico e a medula espinhal.

“Ela é marcada por surtos que atingem principalmente o nervo óptico, causando, em muitos casos, perda visual grave, ou a medula espinhal, o que pode levar à perda dos movimentos, alterações do esfíncter e dificuldades para urinar ou evacuar”, explica a neurologista Priscilla Proveti, coordenadora do Ambulatório de Doenças Neuroimunológicas do Hospital Universitário de Brasília.

Os surtos podem ser devastadores. “Mais de 80% dos pacientes com inflamação na medula apresentam alguma sequela ou não recuperam completamente os movimentos. Além disso, mais de 50% podem ter uma perda visual permanente”, alerta a especialista.

Embora a causa exata da NMO ainda não seja completamente compreendida, sabe-se que fatores genéticos e ambientais influenciam sua ocorrência. A doença afeta até oito mulheres para cada homem, especialmente negras.

Confusão com esclerose múltipla atrasa diagnóstico

A NMO é frequentemente confundida com a esclerose múltipla, pois ambas afetam a medula espinhal e podem causar perda de visão. No entanto, a primeira é mais grave. “Os surtos da esclerose múltipla costumam ser mais leves, enquanto os da neuromielite óptica frequentemente resultam em deficiências permanentes se não tratados rapidamente”, esclarece a médica.

O diagnóstico correto pode ser um desafio, especialmente porque as pacientes muitas vezes procuram primeiro oftalmologistas ou clínicos gerais, retardando o encaminhamento para um neurologista. “O tempo para iniciar o tratamento é crucial. Se o paciente demora a receber atendimento adequado, o risco de sequelas permanentes aumenta muito”, alerta Proveti.

Diagnóstico e tratamento

O diagnóstico da NMO é feito com base nos sintomas, em exames de imagem e na identificação de um anticorpo específico, o anti-aquaporina 4.

O tratamento da fase aguda inclui o uso de corticoides e a plasmaférese. Para evitar novos episódios, os pacientes precisam de terapias imunossupressoras de manutenção. “Hoje, temos medicamentos aprovados especificamente para a NMO, como o inebilizumabe, o satralizumabe e o ravulizumabe, além do rituximabe, que é usado off-label”, informa a neurologista.

Apesar da importância do diagnóstico precoce, a dosagem do anticorpo anti-aquaporina 4 ainda não está disponível no Sistema Único de Saúde (SUS). “Recentemente, houve uma consulta pública para sua incorporação, mas até o momento o paciente que acompanha pelo SUS não tem acesso a esse exame, que às vezes é facilitado pela própria farmacêutica que fabrica os medicamentos”, diz Proveti.

Com um diagnóstico rápido e tratamento adequado, é possível evitar sequelas graves e melhorar a qualidade de vida das pacientes.

 

 
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