Nuvem soberana é soberana mesmo?

O presidente da Dataprev, Rodrigo Assumpção, colocou em dúvida se a “nuvem soberana” do governo federal, um projeto do Serpro embalado com tecnologia do Google, não é lá tão soberana assim.

“Soberania, do ponto de vista de um Estado, é controle sobre um ativo: acesso, cuidado e uso efetivo. Nessa discussão das nuvens soberanas, vamos ter condições de controlar distintamente melhor o acesso e a continuidade do acesso a esses dados. Mas estamos usando tecnologia chinesa, estamos usando tecnologia americana, estamos dependentes ainda de processos tecnológicos e de evolução dessas tecnologias. Então, no mínimo, há relatividade em relação a esta soberania”, disse Assumpção.

A declaração foi feita durante um painel nesta quinta, 31, durante a Semana Nacional de Inovação 2024, na Escola Nacional de Administração Pública, em Brasília, segundo relata o Convergência Digital.

A objeção de Assumpção é compreensível e lógica, se você tem o ponto de vista clássico da esquerda brasileira sobre política de tecnologia, o que provavelmente é o caso de Assumpção, um quadro de carreira dessa área no governo federal.

Assumpção, presidiu a estatal de tecnologia da Previdência entre 2009 e 2017, incluindo o segundo mandato de Lula, o mandato e meio de Dilma Rousseff e inclusive um período no governo Michel Temer.

Não parece que a afirmação de Assumpção vá ter maiores consequências práticas, uma vez que o próprio presidente da Dataprev parece reconhecer que o bonde já passou faz um tempo quando o assunto é querer ser um player de computação em nuvem para valer. 

Na sua fala, Assumpção lembrou que a computação nuvem já se consolidou há pelo menos 15 anos e que o Brasil participa apenas como consumidor nesse mercado.

“Há que se questionar, como estratégia, se ainda dá tempo de participar como um agente de desenvolvimento da tecnologia”, disse Assumpção, no tipo de formulação retórica que um debatedor usa quando não está lá muito convencido que a resposta para algo é “sim”.

A Dataprev, aliás, contratou em setembro a Oracle para fornecer uma solução de computação em nuvem, a ser instalada dentro dos data centers da estatal de tecnologia, que tem entre seus principais clientes a Previdência Social.

ENTENDA A NUVEM SOBERANA

O Serpro anunciou que a “nuvem soberana” do governo federal teria tecnologia do Google durante um evento da multinacional americana em São Paulo no começo de outubro. 

Chave para entender o movimento é o fato de que as tecnologias do Google (o “stack de nuvem”, para usar um termo técnico) funcionam dentro do data center do Serpro em Brasília, administrados pela estatal. 

Dentro do Google Cloud, essa abordagem é conhecida como Google Distributed Cloud (GDC). A solução foi lançada ano passado e atualmente está em desenvolvimento apenas em projetos dos governos do Brasil e de El Salvador, afirma o Google.   

Segundo o Google Cloud, o Serpro terá uma nuvem com as mesmas características de um “hyperscaler”, como são conhecidas as empresas donas de data centers de alta performance como o próprio Google, AWS e Azure. 

A nuvem do Serpro turbinada pelo Google Cloud deve começar a operar em outubro ou novembro, disse Fonseca. 

A próxima etapa do projeto com o Serpro será o treinamento de 2 mil desenvolvedores em gestão e gerenciamento da nuvem, o que posteriormente poderá ajudar na criação de aplicações para a população em todas as esferas do governo: federal, municipal e estadual.

UMA HISTÓRIA DE REVIRAVOLTAS

A história dos projetos de computação em nuvem no Serpro é cheia de reviravoltas, e a parceria com o Google Cloud é uma pirueta especialmente chamativa dessa trajetória.

Em abril deste ano, o Serpro divulgou o projeto da “Nuvem de Governo”, uma solução, que, de acordo com a estatal, transforma o Brasil “na única nação com nuvem 100% soberana no hemisfério Sul”.

A nota divulgada pelo Serpro adiciona ainda que os dados serão mantidos “integralmente dentro das fronteiras do país”, nos data centers da estatal, o que elimina “riscos associados à transferência internacional de dados” e assegura “total conformidade com as regulamentações nacionais”.

A “Nuvem de Governo” representava uma ruptura com a estratégia do Serpro durante o governo de Jair Bolsonaro.

A partir de 2019, o Serpro começou a fechar acordos em série com as gigantes de nuvem, nos quais se posicionava como uma intermediária na venda de nuvem para órgãos de governo.

A AWS foi a primeira a entrar, com um contrato de R$ 71,2 milhões ainda em 2019. Depois vieram Huawei (R$ 23 milhões), Microsoft (R$ 22,6 milhões), Oracle (R$ 41,5 milhões) e IBM (R$ 40,3 milhões).

As condições eram sempre as mesmas: contratos de cinco anos, nos quais os valores fechados são apenas uma base, cuja concretização dependeria de quanto o Serpro fosse efetivamente vender no final.

Não se sabe efetivamente quantos contratos foram fechados por essa modalidade. Ainda no apagar das luzes do governo Bolsonaro, veio a público que o Ministério da Saúde fechou um contrato de R$ 32 milhões com o Serpro atuando como “broker”.

Curiosamente, a única grande empresa de computação em nuvem a não embarcar nos acordos com o Serpro foi justamente o Google Cloud, que agora vira o fornecedor da nova “Nuvem de Governo”.

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