‘Manas’ é para dar voz a meninas silenciadas, diz diretora de filme sobre abuso sexual infantil


Filme é inspirado nos casos de exploração sexual infantil da Ilha do Marajó e estreia nesta quinta (15). Longa é 1º de ficção da diretora Mariana Brennand e tem Dira Paes no elenco. Abusos sexuais no Marajó inspiram ‘Manas’
Foi a partir de uma conversa com a cantora Fafá de Belém que a cineasta Marianna Brennand desenvolveu “Manas”. O filme chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (15), após conquistar mais de 20 troféus em festivais estrangeiros.
A conversa entre Fafá e Marianna aconteceu em 2014, e o assunto que prendeu a atenção da diretora foi o histórico de exploração sexual infantil na Ilha do Marajó (PA). A pernambucana, que até então desconhecia os casos, se interessou tanto pelos relatos que decidiu transformá-los em um documentário. Mas logo mudou de ideia.
“Pedir para uma criança traumatizada recontar sua história seria fazer com que ela vivesse mais uma violência”, afirma Marianna em entrevista ao g1. “Eticamente, eu não seria capaz de fazer isso. Aí entendi que a ficção seria uma porta.”
Entre águas
“Manas” é o primeiro longa de ficção da cineasta, que dirigiu os documentários “Francisco Brennand” (2012) e “Danado de Bom” (2016). Seu novo filme, que levou mais de dez anos para ser desenvolvido, conta a história de Tielle (Jamilli Correa), garota de 13 anos que vive em uma comunidade ribeirinha no Marajó.
Em uma pequena casa de palafita, vivem Tielle, seu pai Marcílio (Rômulo Braga), mãe Danielle (Fátima Macedo) e três irmãos menores. A família sofre com insegurança alimentar e compartilha o quarto para dormir.
Com a chegada da puberdade, Tielle é incentivada pela mãe a vender açaí nas balsas da região. Lá, a garota passa a ser explorada sexualmente pelos tripulantes. Violência que não é tão diferente da que sofre em casa, onde seu pai a submete a abusos e assédios.
A história é inspirada em casos reais. Além de viajar pela região diversas vezes, a cineasta pesquisou sobre as trajetórias da irmã Marie Henriqueta e do delegado Rodrigo Amorim, dois nomes importantíssimos no combate à exploração sexual infantil no Marajó — ambos colaboraram com o filme, assim como psicólogos, assistentes sociais e conselheiros tutelares da região.
Cena do filme ‘Manas’
Divulgação
Em frente às câmeras
Para a cineasta, seu filme é uma maneira que ela encontrou para dar voz “a essas meninas e mulheres tão silenciadas”.
Marianna diz que sua ideia foi fugir do maniqueísmo e mostrar a complexidade desses casos. Ela também se recusou a usar violência gráfica em “Manas”.
“Eu não posso assinar embaixo de uma violência”, afirma a cineasta, ao explicar a ausência do explícito nas cenas de violência sexual. “Foi uma oportunidade de fazer um filme respeitando nossos corpos, a nossa existência. É um posicionamento político através do cinema, do que eu mostro e do que escolho não mostrar. Como eu poderia expor o corpo dessa menina?”
Ela se refere a Jamilli Correa, que interpreta a protagonista Tietlle. Aos 16 anos, a paraense nunca havia atuado, mas impressionou em “Manas”. Entregou uma atuação profundamente tocante e, agora, vive uma carreira promissora.
Cenado filme ‘Manas’
Reprodução/Manas/Marianna Brennand
Violência ao longo dos anos
O restante do elenco também tem sido bastante aclamado. Ao g1, Dira Paes diz que o filme serve como trocadilho de uma frase de Fernanda Torres. “O cinema brasileiro presta”, afirma a atriz. Em “Manas”, ela faz o papel de Aretha, policial inspirada no delegado Rodrigo Amorim e na irmã Marie Henriqueta.
“Esses são nossos heróis, e eles não têm reconhecimento. Há mais ou menos 25 anos, eu fui ao Marajó para apoiar a Marie Henriqueta, que estava jurada de morte [por denunciar crimes sexuais na região]”, conta Dira, explicando sua antiga conexão com os dramas narrados no filme. “O tempo passou, e esses heróis continuam na luta.”
A questão dos abusos no Marajó tem mais repercussão atualmente do naquela época. Desde 2019, a região é alvo de fake news. A ex-ministra Damares Alves afirmou, por exemplo, que crianças eram traficadas para o exterior. Em 2023, o Ministério Público Federal (MPF) pediu que ela e a União pagasse uma indenização de R$ 5 milhões a população do Marajó, por propagar informações falsas e causar “danos sociais e morais coletivos à população do arquipélago”. O órgão afirmou que ela reforçou estereótipos e estigmas sobre a região.
Cena do filme ‘Manas’
Divulgação
“Em vez de ouvir [os ativistas da região] ou dar visibilidade àqueles que já estão nessa batalha há anos, nossa ex-ministra bagunçou o coreto, expôs ainda mais esses heróis, que estão vulneráveis”, afirma Dira, em referência a Damares.
Em 2019, a então ministra disse que meninas eram abusadas na Ilha do Marajó por não usarem calcinha. A fala, que já foi desmentida, foi bastante criticada na época por sugerir que vítimas são culpadas. No filme, há uma cena em que Tielle lava sua calcinha suja de sangue no rio. Ainda que o momento possa parecer uma resposta à fala de Damares, a diretora nega que seja uma mensagem subliminar.
“Esse tipo de declaração nem merece uma contra-resposta, de tão absurda que é”, afirma Marianna. “Desde que eu venho fazendo esse filme, e sai alguma notícia sobre o Marajó, ela acaba virando alvo de fake news, acaba virando uma briga partidária. Isso é uma briga política, da sociedade, dos direitos humanos. Mas não deve virar algo partidário, porque a população que está lá e que precisa de auxílio não se beneficia com isso.”
Assista ao trailer de ‘Manas’
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