Enquanto o mundo celebra o papa dos pobres, moradores do Moinho perdem suas casas

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Em sua primeira viagem como papa, Francisco foi à Lampedusa, a “ilha da morte” para os refugiados africanos, que arriscam a vida em travessias precárias de imigração. A ternura com os que sofriam não tirou o vigor da acusação feita diretamente aos europeus, que se negavam a receber dignamente os que fugiam da pobreza e da violência, esquivando-se de seus valores humanistas e da sua responsabilidade histórica.

De um altar improvisado em um barco de pesca, cercado de pessoas em completo desamparo, sem rumo e sem o mínimo para sobreviver, Francisco cobrou as vidas perdidas com uma dura frase bíblica: “Caim, onde está seu irmão?”

Era o início da luta do Papa Francisco contra a “globalização da indiferença”, coerente com a vida religiosa de Jorge Bergoglio. Apelidado pejorativamente de “padre villero” em sua Argentina natal, pelo costume de frequentar presídios e favelas, e lidando com o estranhamento da Cúria diante de seus hábitos simples e de sua insistência no convívio com os pobres, o Papa respondeu: “Quando alguém me acusa de ser um papa ‘villero’, apenas rogo para que seja sempre digno disso”, escreveu na autobiografia “Esperança”.

Foi essa a frase que me veio à cabeça, ao assistir à remoção das primeiras dez famílias da Favela do Moinho, no centro de São Paulo, na terça-feira passada, enquanto o mundo homenageava o Papa. O que diria Francisco, o Papa da compaixão, diante da imagem dos móveis humildes retirados das casinhas da favela, enquanto os vizinhos se despediam às lágrimas dos que partiam, sabendo que, também eles, terão que sair dali?

Não adiantou protestar, nem mesmo reivindicar o mínimo: que as autoridades entregassem as prometidas moradias antes de tirar mais de 800 famílias de suas casas. Antes mesmo de obter a permissão da União, dona do terreno que a favela ocupa, Tarcísio Freitas respondeu aos moradores com bombas – até na sexta-feira santa – e uma oferta ultrajante aos que temiam perder tudo: um auxílio-aluguel de 800 reais, que não paga nem um quarto em um cortiço, e cartas de crédito de 200 mil a 250 mil reais, para adquirir – com parcelas pagas por eles – uma unidade habitacional sem prazo para ser entregue nem localização exata (os detalhes sobre essa proposta indecente estão em minha coluna da semana passada).

Também nesta semana, na quarta-feira passada, a imprensa divulgou dados de uma pesquisa do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, da Universidade Federal de Minas Gerais, que mostram que apenas no primeiro trimestre deste ano, cerca de 3 mil pessoas passaram a viver nas ruas da capital paulista.

Com isso, são quase 100 mil pessoas que não têm onde morar na cidade mais rica do país, em que o número de propriedades vazias (mas com dono) soma 590 mil imóveis. “No mundo de hoje, muito poucas pessoas ricas possuem mais do que o resto da humanidade. É uma injustiça que clama aos céus!”, como disse o Papa Francisco na série de catequeses “Curar o Mundo”, divulgada durante a pandemia.

Mas o governador de um estado com mais de 140 mil pessoas em situação de rua, além de milhares em moradias precárias, não teve vergonha de celebrar o Papa com um post no X às vésperas de dar início ao seu plano de “revalorização do centro”, termo sempre repetido por aqueles que veem os pobres como estorvo e não como pessoas que precisam de políticas públicas de assistência social, saúde, geração de renda e moradia para terem o direito universal à dignidade. 

Ainda há uma possibilidade de reagir à globalização da indiferença abraçada pelo governo do Estado e pela prefeitura da cidade. A Secretaria do Patrimônio da União, gestora de bens públicos como o terreno em que está assentada a favela, pode deixar de lavar as mãos, como Pilatos, e fazer cumprir suas exigências para ceder a área ao governo do Estado, que pretende ali instalar um parque como parte de uma ambiciosa parceria público privada (PPP) com custo previsto de 4 bilhões de reais.

No dia 14 de abril, a SPU, que faz parte do Ministério da Gestão comandado por Esther Dweck, enviou um ofício ao governo paulista pedindo mudanças no plano de reassentamento da favela do Moinho, do qual as dez primeiras famílias que deixaram suas casas na terça-feira fazem parte. Entre outras exigências, a SPU requisitou a disponibilização de imóveis gratuitos aos moradores que ganham menos de um salário mínimo, a proibição de demolições das casas até a cessão do terreno e um aumento no auxílio-aluguel para 1.200 reais e do valor da carta de crédito para 300 mil reais.

Um alento tardio, mas uma esperança para os moradores, visto pelo governo do Estado de São Paulo como gesto de “má vontade” do governo federal. Vamos ver até onde vai agora o governo Lula, em consonância com seus princípios democráticos e humanitários, para proteger a população que vive no terreno da União.

Manifestações públicas de homenagem ao papa mais popular da história recente são fáceis de fazer e, não por acaso, uniram políticos e autoridades de todas as correntes. A diferença, como mostrou Francisco, está na atitude e nas ações, principalmente por parte daqueles que se dizem cristãos. “Um cristão verdadeiro não pode ser hipócrita e um hipócrita não é um verdadeiro cristão”, dizia o Papa.

Rezo agora como paulistana, inspirada em uma dramática inscrição feita com tinta vermelha no Pátio do Colégio, a primeira construção da cidade erguida por jesuítas e ponto turístico da capital, que se tornou local de reunião de centenas de sem-teto: “Olhai por nós”.

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