Conclave: Igreja Católica tenta se blindar das notícias falsas e campanhas de difamação

Entre os dias 6 e 11 de maio, 135 cardeais de diferentes partes do mundo irão se reunir na capela Sistina para decidir quem será o novo líder da Igreja Católica. Uma vez que atravessem os portões do santuário, não terão acesso a nenhum tipo de comunicação com o lado de fora até que um papa seja eleito. As pressões externas que tentarão influenciar os votos dos cardeais e os ânimos dos fiéis sempre estiveram presentes na história do conclave, mas há um agravante moderno: a facilidade com que as notícias falsas circulam nos meios digitais.

O papa Francisco alertava para os perigos da desinformação e sobre o mau uso da IA. Em um de seus vários pronunciamentos sobre os temas, em maio de 2023, ele reconheceu que vivemos “num período da história marcado por polarizações e oposições – de que, infelizmente, nem a comunidade eclesial está imune”. Ele também temia a influência que Trump poderia ter na escolha do seu sucessor.

Por que isso importa?

  • As tentativas de influenciar os votos dos cardeais sempre estiveram presentes na história da votação, mas os meios digitais que potencializam as notícias falsas são um agravante moderno;
  • Comunicadores católicos ouvidos pela reportagem reconhecem que a desinformação pode trazer tensões durante o conclave e após a escolha do novo Papa.

“Vivemos num tempo em que muitos aproveitam as facilidades tecnológicas para provocar ódio, a reação do outro, o combate, o conflito e a guerra”, reconheceu o vaticanista Silvonei José Protz, em entrevista à Agência Pública. Há 35 anos, ele trabalha na Rádio Vaticano, em Roma.

Nesse período, Protz noticiou o dia a dia de três diferentes papas – João Paulo II, Bento XVI e Francisco. Nos conclaves que acompanhou, disse ser fato que certos “networks (redes de influência) internacionais” tentavam influenciar na eleição. Ele concorda que grupos externos ao cardinalato “buscam gerar tensão por meio de certas notícias que são veiculadas, numa tentativa de interferir [no conclave]”,mas nega que essas forças tenham tido sucesso nas eleições papais e diz que confia na “providência” divina para guiar a escolha.

“O colégio cardinalista é formado por pessoas, e pessoas têm sentimentos. Muitos chegaram a dizer que as grandes potências interferem dentro do conclave. Isso não é verdade, até porque nós, católicos, acreditamos piamente que o que acontece dentro da capela Sistina é governado pela providência, pela oração e pelo Espírito Santo, que vai guiar o coração e a mente dos nossos cardeais”, diz.

Como o conclave é um acontecimento vivido em alguma medida por todos os católicos, e não só pelos cardeais, existe uma disposição legítima de participar do processo, e outra perniciosa, distingue o radialista. “Enquanto a pessoa expressa sua ideia ou opinião, está perfeito; o problema é quando quer fazer essa ideia ou opinião interferir na dos outros, prevalecer sobre as demais. Existem pressões a favor de certos nomes, e a tentativa de colocar outros nomes na penumbra, o que historicamente não teve eficácia. Basta pensar na eleição de João Paulo II e na de Francisco. O nome deles não era citado como favorito na imprensa”, diz.

Praça de São Pedro durante o conclave de 2013

O fato é que, no último conclave, em 2013, as pressões atingiram tal ponto que a tradicionalmente discreta Secretaria de Estado do Vaticano divulgou uma nota para rebater o que classificou de “notícias não verificadas ou não verificáveis ou diretamente falsas” que buscavam “condicionar a eleição do papa”.

“’Não falta quem tenta se aproveitar deste momento de surpresa e de desorientação dos espíritos fracos para semear confusão e lançar descrédito sobre a Igreja e o seu governo, recorrendo a instrumentos antigos – como a maledicência, a desinformação e às vezes a própria calúnia”, dizia a nota do Vaticano, que não especificava os boatos a que se referia.

No conclave deste ano, a situação pode se repetir. As notícias falsas eram uma preocupação do papado de Francisco, que recorrentemente se posicionou sobre a onda de desinformação que assola democracias mundo afora. O papa apoiou, como uma das formas de se conter as mentiras que circulam na internet, a aprovação de legislações que regulem o ambiente midiático e responsabilizem os autores de notícias falsas.

Associação católica contra as fake news

Um dos responsáveis pelo esforço de blindar parte da comunidade cristã da desinformação é Alessandro Gomes, 52 anos, presidente da Associação de Comunicação Católica, a Signis Brasil, e um de seus diretores na América Latina e Caribe. A Signis – cujo nome, em latim, é uma junção de “sinal” e “fogo” – é uma associação de direito pontifício subordinada diretamente ao papa. Sua função, explicou Gomes à Pública, “é ajudar na construção de uma comunicação voltada para uma cultura de paz”.

Na prática, a Signis tem atuado na formação de jovens comunicadores, com foco no desenvolvimento e no respeito à diversidade humana. Uma vez formados, estes jovens ministram oficinas sobre educação midiática, replicando o conhecimento que adquiriram.

Além disso, a Signis integra o coletivo Bereia, uma rede de comunicadores que se dedica à checagem de notícias que circulam nos ambientes digitais religiosos.

Gomes, que é também doutor em Ciências da Religião pela PUC-MG, não crê que as notícias falsas sejam o bastante para manipular a escolha do novo papa, mas teme o que a desinformação pode provocar após a eleição do sumo pontífice.

“As tentativas de desmoralização – a chamada fake news –, prévias ao conclave seriam pouco efetivas, até porque os nomes dos papáveis não estão dados. Mas acredito que haverá uma campanha de difamação agressiva contra o novo papa caso o escolhido, assim como Francisco, não agrade a um dos lados da sociedade”, disse.

Ele acrescenta que a comunicação do Vaticano está atenta à existência de “grupos especializados que trabalham planejadamente para desinformar”. “A extrema-direita tentou, de todas as maneiras, desestabilizar o papado de Francisco nesses 12 anos. Mas nem assim ele fraquejou em sua missão de liderar a Igreja. Mas poderá haver sim uma tentativa de desqualificar o próximo escolhido, consequentemente desqualificando os votos dos cardeais após o conclave”.

Ataques da extrema-direita

Pelas posições que assumia, como suas críticas ao capitalismo predatório e em favor da inclusão dos homossexuais no corpo da Igreja, o papa Francisco desagradava grupos conservadores e líderes de extrema-direita mundial.

Posições de papa Francisco a favor de minorias não é aceita por líderes de extrema-direita

Javier Milei, atual presidente da Argentina e conterrâneo de Francisco, por exemplo, já chamou o ex-pontífice de “representante do maligno” e de “filho da puta que prega o comunismo”; Donald Trump, por sua vez, considerou “vergonhosa” às considerações de Francisco sobre a sua política de expulsar dos Estados Unidos os imigrantes.

Nesse contexto, o historiador da Igreja Massimo Faggioli, professor na Universidade Villanova, na Filadélfia (EUA),  disse à agência de notícias italiana Ansa que há risco de uma tentativa de interferência coordenada da extrema-direita no atual conclave, “ainda mais com Elon Musk na Casa Branca”.

Dado o histórico político do bilionário dono da Tesla e assessor de Trump, acrescentou Faggioli, “não surpreenderia se agissem com alguma fake news para influenciar ou queimar algum candidato”.

No fim do ano passado, um gesto de Trump já sinalizava que a relação dos EUA com o Vaticano não seria das melhores: a indicação de Brian Burch, criador do grupo conservador CatholichVote, como embaixador estadunidense na Santa Sé. Burch é um crítico do papado de Francisco, que segundo ele criou “confusões” dentro da Igreja cujo “esclarecimento”, disse, caberia ao novo papa. A indicação de um agente político para o cargo de diplomata, analisou o jornal norteamericano National Catholic Reporter, representa uma quebra na tradição da Presidência de delegar a embaixada a acadêmicos católicos.

Mas o assessor de comunicação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), padre Arnaldo da Silva, sustenta que as escolhas de Trump ou de qualquer outro governante não causarão ingerências no Vaticano. “Cada chefe de estado escolhe quem melhor lhe convier dentro de sua plataforma de governo. Mas que isso possa impactar no espírito do conclave, não acho possível”, disse à Pública. Ele disse ainda, que a CNBB busca orientar os cristãos a identificar as “narrativas” das informações verdadeiras, orientando-os a buscar se as notícias que chegam por Whatsapp têm confirmação nos meios de comunicação oficiais.

“A desinformação é um desafio, mas um desafio previsível, e qualquer instituição ou pessoa com relevância global, como era papa Francisco, estará exposto [a desinformação] que circula nas redes sociais”, diz.

Ensinar os fiéis a separar o joio do trigo, completa o assessor da CNBB, é um dos papéis da comunicação da Igreja. “Turbulências e comunicações externas confusas podem ser criadas, mas estamos aqui para ajudar, até porque a Igreja tem uma capilaridade muito grande – há lugares onde a internet não chega, mas a palavra da Igreja, sim”.

“Sempre haverão pessoas que tentarão fomentar uma animosidade [contra alguns cardeais], mas cabe a CNBB e a comunicação do Vaticano apresentar a verdade, ajudando as pessoas a viver esse momento que é de expectativa positiva”, explica.

Ele acredita que, caso aja uma apologia de líderes de direita ou de esquerda para emplacar um papa alinhado a essas ou àquelas ideias, o tiro pode sair pela culatra. “Na Igreja, temos um ditado popular que diz que quem entra no conclave favorito a papa, sai cardeal. As especulações existem, mas quem escolhe o pastor da Igreja é Deus. Como ovelhas, aguardamos com esperança pelo novo papa, sem esquecer que ele deverá dar continuidade ao que o papa Francisco e todos os outros papas deixaram como legado”, conclui.

A senha para se combater a desinformação e a mentira, concordaram todos os comunicadores católicos ouvidos pela Pública, foi apontada pelo próprio papa Francisco.

Em um pronunciamento sobre o tema, ele exortou os fiéis a se engajarem numa comunicação não-hostil, que não se curve ao “o hábito de denegrir rapidamente o adversário, aplicando-lhe atributos humilhantes, em vez de se enfrentarem num diálogo aberto e respeitoso”.

“Por isso mesmo”, arrematou o papa, “há que se rejeitar toda a retórica belicista, assim como toda a forma de propaganda que manipula a verdade, deturpando-a com finalidades ideológicas”.

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