Psiquiatra alagoana Nise da Silveira ganha homenagem em prédio de São Paulo

“Gente curada demais é chata. Todo mundo tem um pouco de loucura”. Com essa frase marcante de Nise da Silveira, a artista mato-grossense radicada em Alagoas Ursa Nath apresenta a obra “O Navegar de Nise”. O mural grandioso, que homenageia a psiquiatra alagoana pioneira na revolução antimanicomial, está localizado em um prédio de 20 andares, de 66 metros de altura, na Avenida Duque de Caxias, no centro de São Paulo.

A obra, produzida em parceria com a Parede Viva e uma equipe de quatro artistas — Iskor, Loss, Negana e Bea Corradi —, retrata Nise da Silveira cercada por elementos inspirados na expressão artística dos pacientes do Museu do Inconsciente, criado por ela. “Tive a ideia depois de ter visitado a exposição no Sesc Belenzinho de São Paulo. Já havia conhecido sua trajetória antes, mas depois de ter visto a exposição, tive mais vontade de homenageá-la, porque consegui me conectar mais a sua trajetória”, disse.

O mural foi concebido a partir de esboços baseados em pesquisas e fotografias sobre a psiquiatra e seus pacientes. A frase estampada na obra reflete a crítica da artista à pressão social por uma imagem constante de sucesso e bem-estar, especialmente nas redes sociais.

 

“A sua visão sobre utilizar outros meios para além de lobotomia e terapias de choque, para trabalhar na saúde mental dos pacientes é o que mais me inspira. Na arte, podemos ver uma escultura, uma mandala e navios, que são elementos presentes na criação visual ou imaginativa de seus pacientes. O fato de ela ter resistido e se formado numa turma de 157 alunos de medicina, na qual ela era a única mulher, também é inspirador”, destaca a artista.

 

Artista Ursa Nath (ao fundo, de óculos) cria mural de 66 metros em São Paulo, celebrando o legado de Nise e a arte como cura para a mente

Mural celebra o legado de Nise e a arte como cura para a mente

 

 

Simbolismo impactante

A escolha do local para a obra também carrega um simbolismo forte. O mural está em uma região onde muitas pessoas com transtornos mentais e dependências químicas são marginalizadas. “A produtora estava interessada há alguns anos no prédio para produzir um painel nele. Então minha proposta deu match no momento em que autorizaram o local”, conta Ursa. Para ela, a obra estimula uma reflexão sobre a forma como a sociedade trata essas pessoas, e que foi pertinente trazer uma figura como Nise, para pensarmos em soluções mais humanizadas”, conta Ursa. 

“Espero que se lembrem do legado de Nise, da importância de discutirmos porque tantas pessoas foram parar nas ruas em estado indigno, porque permanecem desta forma e como a sociedade e os governos podem trabalhar em um nível profundo para que este ciclo de adoecimento se quebre”, destaca.

“Também é esperado que as pessoas entendam que não existe pessoa perfeita, que todos temos algum grau de distúrbio mental/ emocional que se manifesta em determinado tempo em nossas vidas”, completa.

Medo de altura, raios e chuvas torrenciais, os desafios da artista

Pintar um mural de 66 metros não foi uma tarefa fácil. Ursa enfrentou desafios como medo de altura, calor intenso, ventos fortes e chuvas torrenciais. Em um dos momentos mais críticos, a equipe foi surpreendida por uma tempestade que assolou São Paulo em janeiro. O resgate do andaime suspenso levou 15 minutos, enquanto raios caíam nas proximidades. “Foi apavorante, mas felizmente tudo correu bem”, relembra.

Mas, segundo ela, foi uma experiência emocionante. “Os assistentes já haviam muita experiência com pintura em altura, foram muito solícitos em me ensinar algumas técnicas. O que mais me marcou foi criarmos o grid com quadrados de 2m x 2m, numerando as fileiras de cima a baixo, para depois, com uma foto aérea deste grid, sobrepor as linhas da arte numa montagem e a partir daí, começar a marcação dela no prédio”, detalha a artista.

Trajetória de Ursa Nath e apoio recebido

Com apoio do Governo de Alagoas, a artista realizou exposições na Bienal de Alagoas, no Museu da Imagem e do Som e no Complexo Cultural do Teatro Deodoro. Em 2024, liderou o projeto “Diversas” com recursos da Lei Paulo Gustavo, através da Secretaria de Estado da Cultura e Economia Criativa (Secult), promovendo um diálogo sobre as múltiplas representações do que é ser mulher em Maceió. No mesmo ano, foi selecionada pelo Festival Cena Nordeste para criar um mural no Centro de Criatividade de Aracaju, ao lado de grafiteiros alagoanos.

“Ver uma artista que iniciou sua trajetória em Alagoas alcançar um feito dessa magnitude nos enche de orgulho. Ursa leva a história de Nise da Silveira para um dos maiores centros urbanos do país, promovendo uma reflexão atual sobre a saúde mental e o papel transformador da arte”, disse a secretária de Estado da Cultura e Economia Criativa de Alagoas, Mellina Freitas.

Mellina também destaca o impacto do trabalho de Nise. “Ela foi uma visionária que revolucionou a forma como enxergamos a saúde mental. O mural ‘O Navegar de Nise’ amplia sua mensagem e reafirma a importância da expressão artística no cuidado com a mente”, reforçou.

Sobre a artista

Formada em Design, Ursa Nath é ilustradora e artista visual, com um trabalho influenciado pelo graffiti, pelas artes visuais e pelo design. Seus temas abordam questões sociais, ambientais e culturais da América Latina. Desde 2011, quando começou no graffiti em Alagoas, participou de diversas exposições e recebeu prêmios, incluindo uma menção honrosa da ONU Brasil e o “Prêmio Mulheres Resistência nas Artes” da Câmara Municipal de Recife. Recentemente, foi homenageada com o Prêmio Selma Bandeira na categoria Artes Visuais.

Ursa acredita no graffiti como uma ferramenta de transformação social. “A arte transforma a cidade, integrando-se com suas cores, formas, mensagens, gerando reflexões e modificando positivamente o emocional de quem passa por ela – vide depoimentos que venho ouvindo ao longo de anos. Também pode inspirar pessoas a aprenderem a se expressar e a até a trabalhar com arte, e muitas vezes isso pode ajudar no tratamento de distúrbios mentais como depressão, além de auxiliar também indivíduos a desviarem de caminhos marcados por vícios, tráfico de drogas e violência”, ressalta a artista.

Nise, uma mulher à frente de seu tempo

Nise da Silveira foi uma psiquiatra revolucionária que lutou contra tratamentos desumanos para doenças mentais, como a lobotomia e a terapia de choque. Defensora das políticas antimanicomiais, incentivou a criação de ateliês terapêuticos, onde pacientes podiam se expressar por meio da arte. Seu trabalho influenciou profundamente a psiquiatria no Brasil e no mundo, reforçando a importância do tratamento humanizado na saúde mental. Se estivesse viva, Nise da Silveira estaria completando 120 anos neste ano.

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