Com alojamentos improvisados e doações, ocupação de comunidades tradicionais na secretaria de educação do PA completa um mês


Indígenas e quilombolas deixaram territórios para protestar em Belém contra lei que alterava a educação escolar em comunidades mais afastadas e ameaçava o ensino presencial. Após acordo, lei foi revogada por unanimidade na Alepa. Indígenas ocuparam prédio da Secretaria de Educação do Pará por um mês
Nay Jinknss
A ocupação de indígenas e quilombolas completa um mês nesta sexta-feira (14) na Secretaria de Educação (Seduc) do Pará, em Belém, com cozinha e alojamentos improvisados, contando com doações e apoio voluntário.
O protesto é contra a lei 10.820, proposta pelo governo estadual, que alterava regras da educação pública sem garantir aulas presenciais em aldeias e comunidades do campo, ribeirinhas e quilombolas. A lei foi revogada com unanimidade após votação na Assembleia Legislativa do Pará (Alepa) na quarta-feira (12). A revogação foi publicada no Diário Oficial na tarde de quinta-feira (13). Outra reivindicação era a exoneração do titular da Seduc, Rossieli Soares, o que não se concretizou.
Indígenas comemoram revogação de lei que alterava regras de aulas presenciais nas comunidades tradicionais do Pará.
Nay Jinknss
Na tarde de quarta-feira (12), indígenas celebravam a decisão de revogar a lei, inicialmente na frente da Alepa e depois, na sede da Seduc. Jovens jogavam futebol e mulheres dançavam carimbó. Em uma área da ocupação, crianças brincavam, enquanto os pais estavam envolvidos na manifestação, sob supervisão de voluntários do curso de artes visuais da Universidade Federal do Pará (UFPA).
“Criamos um grupo para auxiliar e cuidar das crianças, com atividades como pintura, desenho, leitura, massinha. A gente sabe que é uma coisa importante o que os pais delas estão fazendo, então eu como estudante de licenciatura, sei o quanto a educação é importante, por isso resolvi ajudar”, conta Ali Araújo, estudante de artes visuais.
Outra forma que os indígenas encontraram para se organizar na ocupação é a medicina tradicional. A indígena Edite Alves é parteira e trabalha com ervas medicinais desde os 18 anos, ensinada pela avó. Na ocupação, ela comercializa banhos, pomadas e massagens, segundo ela, para renovar energias de quem está nas manifestações. Entre as plantas usadas estão piaçoca, marrequinha, pau-de-angola, junto de andiroba, copaíba e mel de abelha.
” Tudo isso é livrar de todo mal, porque a gente sabe que quem vai para uma ocupação vai em perigo, sem saber se vai dar certo, se vai ficar bem. De vez em quando, mandam a polícia encarar a gente. Então esse é o meu trabalho dentro da aldeia. Quem puder comprar, eu vendo. Quem não tiver e estiver doente, eu dou”.
Dias depois que os indígenas ocuparam a Seduc, no dia 14 de janeiro, quilombolas também foram para o local, já seriam afetados pela lei que alterava a educação escolar nas comunidades afrodescendentes.
Fátima Oliveira é coordenadora da comunidade quilombola Vila Formosa, no município de Acará, no nordeste do estado. Ela ficou responsável pela cozinha do grupo e relata que passou dificuldades para alimentar todos, mas que as doações não tinham parado de chegar.
“A gente não tinha onde cozinhar, cozinhávamos aqui debaixo de chuva, e as pessoas vieram doar, professores, comunidades, famílias. Elas somaram muito e cada contribuição foi muito importante, então nunca faltou alimentação”.
Uma das pessoas que faz parte da rede de apoio voluntário é a professora Professora Tereza Catarina, especialista em educação na Seduc. Ela disse que desde o início acompanha a movimentação na secretaria. “Percebi o quanto essas comunidades podem nos ensinar sobre resistência. Então ocupamos de várias formas. À noite, havia as manifestações culturais com o carimbó, era um momento de se solidarizar e fazer parte”, descreve.
“Eu com 62 anos me sinto gratificada de ter participado de alguma forma. Vimos chuvas levarem cobertura dos quilombolas, barracas de famílias de indígenas com crianças, e isso me deu indignação. Acho que tudo isso foi um sentimento de pertencimento a essa ancestralidade, isso me fez vir aqui quase todos os dias”.
Após a sessão na Alepa pela manhã, uma comissão de lideranças se reuniu com o presidente da Alepa, deputado Chicão (MDB), para definir o transporte dos manifestantes de volta para os territórios.
A previsão é que a desocupação da secretaria ocorra ainda nesta sexta-feira (14), como parte do acordo firmado entre governo e manifestantes. As lideranças aguardavam a publicação da revogação no Diário Oficial do Estado, o que ocorreu na tarde de quinta, para poderem retornar para seus locais de origem.
Ocupação na Seduc completa um mês em Belém.
Taymã Carneiro / g1
Prédio da Seduc é ocupado há um mês em Belém.
Taymã Carneiro / g1
Fátima Oliveira é uma das que cuida da alimentação de manifestantes quilombolas na ocupação da Seduc, em Belém.
Taymã Carneiro / g1
Área de doações na ocupação da Seduc, em Belém.
Taymã Carneiro / g1
O que diz a Lei 10.820/24 e o que ela mudava para a educação indígena
Educação escolar indígena: entenda a disputa entre o governo do Pará e manifestantes
Aprovada em dezembro de 2024, a Lei 10.820/24 unificou 68 artigos do sistema de leis aplicáveis ao ensino público estadual.
Para fazer a unificação, várias leis estaduais da educação foram revogadas, como a Lei nº 7.806, de 29 de abril de 2014.
A Lei nº 7.806, conhecida como Sistema Modular de Ensino (Some), trazia regras sobre o funcionamento das aulas em áreas distantes dos centros urbanos, como as aldeias indígenas
Segundo os indígenas, a Lei 10.820/24, ao revogar a Lei nº 7.806, extinguiu tanto o Some, quanto a extensão dele, o Sistema de Organização Modular de Ensino Indígena (Somei) — responsável por levar ensino médio presencial às comunidades indígenas.
Já de acordo com o governo do Pará, a Lei 10.820/24 garante, no artigo 46, a continuidade do sistema Some. Ainda segundo o governo, “áreas que já contam com o Some continuam sendo atendidas”.
A Lei 10.820/24 não mencionava o ensino indígena. A ausência, para os indígenas que ocupavam o prédio da Seduc, trazia insegurança jurídica ao não mencionar o funcionamento do Somei. Para os manifestantes, a nova lei do magistério do Pará abria uma brecha para a extinção gradativa do ensino modular presencial indígena.
g1 em 1 minuto Pará:Alepa aprova revogação da lei nº 10.820
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