Marina Silva: “Lula nunca me pressionou por exploração de petróleo na foz do Amazonas”

A ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, se manifestou pessoalmente pela primeira vez, nesta quinta-feira (6), em entrevista à Agência Pública, sobre o imbróglio em torno da tentativa, por parte da Petrobras, de exploração de petróleo na Foz do Amazonas. O tema voltou à tona nesta semana depois de o presidente Lula ter sinalizado, em privado e em público, que a licença vai sair em breve.

As declarações reacenderam uma pressão sobre a área ambiental do governo que já dura quase dois anos, desde que o Ibama negou um primeiro pedido da empresa. Marina voltou a dizer que se trata de uma decisão técnica, que vai ser tomada dentro do rito legal do processo de licenciamento do Ibama. Negou que esteja sofrendo pressão do presidente Lula e disse que as contradições do governo são normais. “Mas as contradições são para serem superadas. E o presidente Lula tem muita consciência disso.” 

A questão opõe o Ministério de Minas e Energia e o Ministério de Meio Ambiente, mas tem pendido para o primeiro, não só pelo claro interesse de Lula no aumento da exploração de petróleo no Brasil, mas também por contar com o apoio de muitos parlamentares, inclusive do novo presidente do Senado, Davi Alcolumbre. O projeto é visto por eles como fundamental para o desenvolvimento econômico do país. 

Ambientalistas alertam para os riscos locais à biodiversidade e aos povos tradicionais e para os riscos globais de piora do aquecimento global com a exploração de petróleo, justo quando o país está prestes a receber a 30ª Conferência do Clima da ONU (a COP30), em Belém, que visa, justamente, estabelecer um caminho para o fim dos combustíveis fósseis.

Por que isso importa?

  • No ano em que o Brasil recebe a COP30, presidente Lula voltou a se manifestar de modo favorável à exploração de petróleo na Foz do Amazonas, o que pode comprometer os esforços do país na redução de gases de efeito estufa, além de afetar a imagem que o Brasil quer ter de liderança climática global.
  • Para a ministra, falas anteriores de Lula, no âmbito internacional, mostram um comprometimento do presidente com a transição energética.

Sem fazer críticas à visão interna de Lula, Marina buscou reforçar um posicionamento internacional que o presidente fez de cobrar que o mundo reduza sua dependência de combustíveis fósseis. Segundo ela, ao dizer isso na COP28, em Dubai, Lula teria sido fundamental para que um compromisso sobre isso fosse adotado ao final da conferência.

“O debate sobre o uso ou não de combustível fóssil não é de um país isolado, mas algo que está colocado em contexto global para todos os países. Isso foi estabelecido na COP28: fazer a transição para o fim do uso de combustível fóssil. O presidente Lula foi fundamental para aquela formulação. Se ele não tivesse dito em seu discurso que o mundo precisa sair da dependência do uso de combustível fóssil, possivelmente aquela formulação pudesse ter sido bloqueada nas negociações”, afirmou.

Questionada sobre como isso se reflete para os planos do país, Marina mais uma vez buscou nas próprias falas de Lula uma resposta: “O que o presidente tem dito é que ele quer as duas coisas: o desenvolvimento do país e a preservação do meio ambiente. O desenvolvimento do país, o combate à pobreza, o enfrentamento da mudança climática. Aliás, sem o enfrentamento da mudança climática, o problema da pobreza só se agravará no Brasil e no mundo”.

E lembrou, de modo sutil, que queimar mais petróleo compromete os planos do país de ser uma liderança ambiental. “Mesmo que zeremos o desmatamento da Amazônia, e das florestas tropicais de todas as florestas do mundo, se não reduzir as emissões [por queima de combustíveis fósseis], as florestas vão desaparecer do mesmo jeito.”

Na entrevista, Marina abordou também os desafios impostos pelas queimadas recordes do ano passado e detalhou como elas trazem uma nova complexidade para conter a destruição da Amazônia. Segundo ela, no ano passado, 37% das queimadas ocorreram sobre floresta em pé – uma mudança na dinâmica mais comum de fogo na Amazônia, que é de ocorrer sobre áreas recém-desmatadas. 

A ministra fez, ainda, um balanço sobre as políticas ambientais para a Amazônia 20 anos após o assassinato da missionária Dorothy Stang. Confira a seguir.

Esta semana foi marcada por falas do presidente Lula de que a licença para a prospecção de petróleo pela Petrobras na Foz do Amazonas pode sair em breve. A sra. vem batendo na tecla de que se trata de uma questão técnica, que quem vai decidir é o Ibama. E que não cabe ao seu ministério decidir se o Brasil vai ou não explorar petróleo. Mas todo o barulho em torno dessa questão não escancara a necessidade de discutir a política energética do país do ponto de vista do elefante na sala – que é a questão climática? 

Acho que o debate sobre o uso ou não de combustível fóssil não é de um país isolado, mas algo que está colocado em contexto global para todos os países, grandes e médios produtores e grandes e médios consumidores de energia fóssil, sobretudo de petróleo. Isso foi estabelecido na COP28 [Conferência do Clima da ONU, em 2023, em Dubai]: fazer a transição para o fim do uso de combustível fóssil. O presidente Lula foi fundamental para aquela formulação. Se ele não tivesse dito em seu discurso que o mundo precisa sair da dependência do uso de combustível fóssil [Lula disse: “é hora de enfrentar o debate sobre o ritmo lento da descarbonização do planeta e trabalhar por uma economia menos dependente de combustíveis fósseis”], possivelmente aquela formulação pudesse ter sido bloqueada nas negociações da COP28. 

Eu, pessoalmente, o embaixador André Corrêa do Lago [então chefe dos negociadores brasileiros, recentemente escolhido para presidir a COP30], nossa secretária [de Mudança do Clima] Ana Toni, trabalhamos muito junto com a União Europeia, com vários países, para que saísse a formulação sobre a transição. Não basta só triplicar renováveis, duplicar a eficiência energética [outras metas definidas na COP28]. Você pode triplicar, [mas] se continuar produzindo energia fóssil na mesma quantidade, nada vai mudar para o equilíbrio do planeta. 

E o que foi decidido ali é que os países desenvolvidos lideram essa corrida e países em desenvolvimento, produtores e consumidores, vêm em seguida. O Brasil é um país em desenvolvimento, produtor e consumidor de petróleo, com uma vantagem que tem uma matriz energética limpa, comparado com qualquer matriz energética do mundo. Então, esse debate, ele está posto para todos, produtores e consumidores. Mas a decisão sobre a política energética brasileira não é do Ministério do Meio Ambiente, nem do Ibama. Ela é do Conselho Nacional de Política Energética, do qual o ministério faz parte e dele participa com voz e um voto. 

Como isso se insere na perspectiva da realização da COP30 no Brasil? Espera-se que a cúpula em Belém consiga avançar nesse plano de “transição para longe dos combustíveis fósseis” – que foi acordado em Dubai, mas de um modo tímido, sem metas concretas. A menção quase desapareceu da COP seguinte, em Baku. Todo mundo espera que uma resposta sobre como isso vai se desenrolar virá da COP no Brasil. Qual será essa resposta?

A COP30 vai ter que se debruçar sobre o desafio dos próximos dez anos. E qual é esse desafio? Que a gente tenha um mapa do caminho para o fim do uso de combustível fóssil. De que a gente invista cada vez mais em [energia] renovável para poder ir substituindo essa matriz energética fóssil – o hidrogênio verde é uma grande esperança para esse caminho. E que a gente possa lidar com outros temas que são igualmente relevantes. Não é só transição para o fim de combustível fóssil, é transição para o fim do desmatamento. É implementar tudo o que já foi debatido, acordado, ao longo desses 33 anos [desde a Rio-92], e principalmente o que vem do Acordo de Paris. 

No meu entendimento, não é uma COP puramente para se posicionar. O mundo vem se posicionando sobre combustível fóssil, sobre clima, sobre tudo. Não é uma COP para se promover. É uma COP para ser nem promocional, nem apenas posicional. É uma COP referencial. Há 10 anos foi fechado o Acordo de Paris, um marco na agenda climática global. A COP-30 tem que ser um esforço, não do Brasil – mas com o Brasil liderando, sim –, para ser um marco referencial. Uma COP para pensar como vamos dar conta nos próximos 10 anos. 

A palavra é aceleração da implementação em todas as frentes, de transição para o fim do combustível fóssil, de transição para o fim do desmatamento. É um esforço global. E, obviamente, esse debate está posto para o Brasil, para o Reino Unido, para a França, para o Japão, para a China – que tem dificuldades enormes, mas é uma potência em tecnologia de transição ecológica no mundo hoje.

Mas como esse esforço para fazer com que a COP seja referencial rebate neste momento que estamos vivendo, em que o governo pretende aumentar a exploração de petróleo, justo na foz do Amazonas? Nesta semana, alguns veículos de imprensa afirmaram que a pressa para tentar liberar a licença agora seria justamente para tentar distanciar essa decisão do momento em que ocorre a COP30.

Essa informação, não sei de onde ela pode ter vindo, mas ela não tem base na realidade, porque nós já estamos na COP30. É daqui nove meses, mas não tem nem perto, nem longe, nós já estamos na COP30. Ela começou no Egito [em 2022], quando nós nos candidatamos, e quando nós ganhamos nos Emirados Árabes Unidos [em 2023, quando saiu a decisão de que o Brasil seria o país-sede da conferência neste ano]. E agora ela já está em pleno funcionamento.

Não por acaso o presidente Lula pessoalmente se esforçou para irmos para o Azerbaijão [COP29, no ano passado] com a NDC [contribuição nacionalmente determinada – as novas metas do país para redução de emissões de gases de efeito estufa] apresentada. E aí eu discordo [de quem diz] que o Brasil não apresentou uma NDC ambiciosa. Foi altamente ambiciosa para a realidade de um país em desenvolvimento, que apresenta uma meta de redução de 59% a 67%, para todos os setores e para todos os gases. E que já está em pleno funcionamento uma ação coordenada, integrada com vários setores de governo, em debate com os setores econômicos, com a sociedade civil, com a comunidade científica, com oito planos de ação na agenda de mitigação, com 16 planos de ação na agenda de adaptação, com um plano de transformação ecológica, criando instrumentos econômicos. 

[O Brasil] É um país em desenvolvimento que vive as contradições que o mundo está vivendo. Veja a grande contradição que a Europa vive hoje. O gás natural não era considerado pelos europeus como um combustível de transição, mas com a guerra na Ucrânia passou a ser. Todos os países e governos estão vivendo essa contradição, mas as contradições são para serem superadas. E o presidente Lula tem muita consciência disso. Tanto é que, quando foi feito o lançamento do PAC [Programa de Aceleração do Crescimento], em 2023, no Rio de Janeiro, grandes empreendimentos de alta complexidade ambiental foram encaminhados para estudos. Por orientação dele [Lula]. Ferrogrão, Margem Equatorial, Angra 3, [asfaltamento da BR] 319.

Quando se é governo, lida-se com diferentes agendas. Mas o que o presidente tem dito é que ele quer as duas coisas: o desenvolvimento do país e a preservação do meio ambiente. O desenvolvimento do país, o combate à pobreza, o enfrentamento da mudança climática. Aliás, sem o enfrentamento da mudança climática, o problema da pobreza só se agravará no Brasil e no mundo. 

Há pressão por parte do presidente para sair a licença?

Saiu isso [na imprensa] que o presidente teria feito uma reunião no início do ano para me pressionar sobre a licença. Isso nunca aconteceu. O presidente, quando ele senta [com os ministros], ele trata de um conjunto de questões que estão colocadas. Nesse quesito dos projetos de infraestrutura, nem agora, nem na vez anterior, nunca recebi do presidente Lula, dirigido a mim, qualquer tipo de pressão dessa natureza. O que ele sempre diz é que ele quer que respeite a legislação ambiental e que procure resolver o problema da infraestrutura, dos investimentos. Nesse caso, ele tem uma posição, outros setores de governo têm uma posição. E, como eu disse, os aspectos de oportunidade e conveniência, se vai explorar ou não vai explorar petróleo… até porque existem outras bacias onde está sendo explorado petróleo. A maior parte das licenças que o Ibama dá tem sido para a Petrobras. Essa é uma discussão que está posta em um contexto mais amplo da matriz energética brasileira e da matriz energética global.

Eu repito sempre a mesma coisa, de que cada vez mais as empresas produtoras de petróleo têm que se tornar empresas produtoras de energia. E, no Brasil, nós temos a possibilidade de ser grandes produtores de energia limpa. Não só para, quem sabe, vender essa energia, como é o caso do hidrogênio verde, mas para usar essa energia para transformar a nossa própria matéria-prima, para atrair investimentos para o nosso parque industrial. Para atrair investimentos para o nosso grande potencial de produção de alimentos. E de alimentos que, além de valor nutricional, além de valor sanitário, tenham também o valor da sustentabilidade ambiental.

A sra está dizendo que o presidente nunca te pressionou. Mas quando ele fala abertamente, como na entrevista de quarta-feira às rádios de Minas, que vai liberar – e isso não é matéria de bastidor, é ele mesmo falando – como fica? A licença vai sair?

O presidente fala que vai liberar, mas ele não está dizendo, com isso, que é ele que dá a licença. Não é ele. Quem dá a licença é o Ibama. E, numa república, é observado aquilo que está na lei, no rito legal. E o presidente defende isso. Se a licença sair, pode ter certeza, vai ser uma decisão técnica do Ibama. Se ela não sair, é uma decisão técnica do Ibama. Eu digo isso com a maior transparência da alma. 

O que se busca é fazer uma equalização. Por isso que todo mundo fala em transição. Senão, nós faríamos uma ruptura abrupta com o atual modelo de desenvolvimento. Vamos pensar as coisas na quadratura que elas têm. Se fosse possível decretar que, a partir de hoje, toda a produção do mundo e do Brasil é em base sustentável, se isso dependesse de um decreto, acho que até o [Donald] Trump [presidente dos Estados Unidos] faria. Mas, por isso que se fala em transição justa. Justa para todo mundo. Inclusive para aqueles que só têm petróleo. Mas que o mundo não pode: vocês só têm petróleo, então nós vamos todos morrer. Não. Que façam seus investimentos. E hoje o mundo produtor de petróleo faz grandes investimentos em energia limpa. Só que, como eu disse, não basta investir em energia limpa. É preciso acelerar a limpa e desacelerar a energia não renovável.

Voltando à COP30, a sra. disse que espera que seja de implementação, que seja referencial. Como o Brasil deve desempenhar esse papel?

Esse não é um papel só do Brasil. O país vai liderar um processo complexo, difícil, que envolve 196 países, que por consenso terão que estabelecer o que vão ser os próximos dez anos, se a COP quer ser referencial. E o indicador de sucesso desse grande desafio, não só do Brasil, nem só da COP30, é a implementação do que já foi acordado. É implementar a agenda de financiamento, é implementar a agenda na área de transição energética, de perdas e danos, é implementar o que está decidido em relação a fim de desmatamento, em relação à floresta, em relação a crédito de carbono. O caderno de regras já foi. Agora é implementação.

E como o Brasil, como presidente da COP, pode conseguir isso? 

Um papel de diálogo, de articulação com outros países. A presidência tem um papel importante, mas quem decide é a negociação, que tem um curso próprio. Cada COP tem uma agenda de ação, que tem que estar muito ligada a esses objetivos que queremos alcançar.

Por exemplo, temos que viabilizar US$ 1,3 trilhão por ano para fazer a transição. Agora [na COP de Baku, no ano passado] só ficou apalavrado, como dizia minha avó, [um acordo de] US$ 300 bilhões. Tem aí muito trabalho. O Brasil está se esforçando muito para ter um instrumento inovador, disruptivo, que é o TFFF [Fundo Florestas Tropicais para Sempre], pensando em recursos privados que não são retornáveis, mas também que não são de doação, que é uma engenharia bastante admirável, junto com o Ministério da Fazenda e todos os países que compõem esse combo, Colômbia, Malásia, Indonésia, República do Congo, os países do Tratado de Cooperação Amazônica, com a ajuda do Reino Unido, da Noruega, da Alemanha, do Banco Mundial.

A coisa mais importante é que a NDC alinhada com o 1,5°C não vai ser dentro da COP [neste ano, os países precisam apresentar novas metas climáticas que sejam compatíveis para conter o aquecimento do planeta em 1,5°C, que é o limite estabelecido como crítico pelo Acordo de Paris], vai ser antes, mas nós já vamos saber se está ou não está alinhado e possivelmente não estará. Mas se não estiver alinhado, vai se esperar cinco anos para rever a NDC? Eu defendo que seja encurtado esse prazo, para no máximo dois anos, porque não tem mais como esperar.

Nós já temos 1,5°C [em 2024, ano mais quente do registro histórico, a temperatura média do planeta ficou mais de 1,5°C mais quente que o período pré-industrial], nós já estamos vivendo os extremos. Tudo isso são esforços que o Brasil vai liderar. E o Brasil tem se empenhado em não deixar que a questão da transição para o fim [dos combustíveis fósseis seja deixada de lado], porque será o pior dos mundos. Já estamos há 30 anos [discutindo isso] e já aconteceu tudo o que está acontecendo. O Brasil está comprometido em fazer com que esse debate aconteça.

Mas, então, o Brasil não vai ter nenhuma carta na manga para conseguir mobilizar esses países?

Primeiro não existe carta na manga de um país para algo dessa magnitude. O que nós temos que ter é muita capacidade de criar um bloco, uma coalizão de alta ambição climática, de alto compromisso com o que está acontecendo no mundo num contexto geopolítico tão difícil.

É muito trabalho, muita responsabilidade, muito sentido de urgência. Já existem várias regiões em ponto de não retorno. Cientistas estão dizendo que o Pantanal já pode ter entrado em processo de não retorno. Os indicadores que estão colocados exigem que urgentemente se faça o dever de casa. Florestas são responsáveis por 10% das emissões globais, 90% vêm de outras fontes de emissão, sobretudo, carvão, petróleo e gás. Mesmo que zeremos o desmatamento da Amazônia e das florestas tropicais de todas as florestas do mundo, se não reduzir as emissões [por queima de combustíveis fósseis], as florestas vão desaparecer do mesmo jeito.

Então, é uma responsabilidade inteiramente compartilhada. É uma COP na Amazônia, não é da Amazônia. É uma COP no Brasil, não é do Brasil. Mas o Brasil tem um papel importante, porque há 33 anos atrás elas [as conferências da ONU para clima, biodiversidade e desertificação] nasceram aqui [na Rio-92], ainda num contexto de alerta. Agora, ela acontece no Brasil em um contexto de emergência.

Vamos, então, falar de Amazônia. O desmatamento segue caindo desde que este governo assumiu, mas a degradação no ano passado explodiu por causa das queimadas, em um indicativo de que a Amazônia está mais em risco do que se imaginava antes. Quais foram as lições que o governo aprendeu com base nos incêndios do ano passado? O que vai mudar?

Primeiro, todas as nossas gestões se caracterizam por formulação de política pública com base em evidência. Fomos nós que, há 20 anos, tomamos a decisão de propor para o centro de governo que os dados do desmatamento fossem abertos. Imagine fazer isso com desmatamento em 27 mil km2. Isso é transparência. É fazer política pública com ética pública. Foi uma decisão muito consciente que nós tomamos, mesmo sabendo que iria se pagar inicialmente um preço político. Mas a transparência é a melhor ferramenta que você tem para que as políticas públicas possam ser duradouras. É preciso que a gente crie constrangimentos éticos para nós mesmos.

Agora não é diferente. Nós que pedimos ao Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, que monitora e fornece os dados oficiais de desmatamento] para agora focar a questão da degradação por incêndios. Pela primeira vez estamos, identificando que as queimadas que aconteciam em função de desmatamento ou em áreas desmatadas estão sendo superadas por queimadas em áreas com floresta.

A primeira aprendizagem disso é que a transparência e a ciência ajudam a formular as políticas da forma correta. A segunda é que a ciência vem alertando que a mudança do clima, se ultrapassar [o aquecimento de] 1,5°C de temperatura, pode levar a Amazônia para um processo de savanização. E esses dados, a serem confirmados pela ciência obviamente, já indicam que incêndios na ordem de 37% em floresta pode ser um indicador de que a floresta está perdendo muito rapidamente umidade. 

Aí tem que ter uma combinação de não uso do fogo, de combate e punição aos incêndios criminosos – já que os incêndios não são em função de fenômenos naturais, e sim pela ação humana –, e ao mesmo tempo continuar com a agenda de mitigação e adaptação, que é o que vai fazer a diferença.

Se não tivesse havido redução de desmatamento, a situação poderia ser incomparavelmente pior, porque juntaria aumento de desmatamento, como vinha no governo anterior, com criminalidade proposital de fazer os incêndios, com temperatura alta, baixa umidade, ventos de até 70 km por hora, como no caso no Pantanal, e aí temos uma química altamente difícil de ser enfrentada, não só por sermos um país em desenvolvimento.

Então, o que isso nos diz? Que as leis não podem ser flexibilizadas. Precisam ser cada vez mais implementadas. As dinâmicas de punição têm que ser acompanhadas também de incentivos econômicos, para que as pessoas possam mudar suas práticas tradicionais em relação ao próprio manejo do fogo, que historicamente acontecia. Daí já está a implementação, o pleno vapor, da lei do manejo do fogo, todo o processo de recurso extraordinário que foram mobilizados, uma sala de situação permanente que não foi desmontada, e uma série de medidas que estão sendo já trabalhadas, além de medidas legislativas, no eixo dos marcos regulatórios. 

Por exemplo, a medida que estabelece que uma área queimada não perde o status de floresta. Isso já é uma aprendizagem, porque geralmente as pessoas queimam para degradar na expectativa de depois regularizar a área, [sob o argumento de que] já está queimada, já está aberta. Com base num dispositivo da lei da Mata Atlântica, isso foi agora estendido para as demais áreas com floresta. Mesmo que tenha queimado, que não sobre uma moita, não perde o status de floresta, portanto não pode ser regularizado, deixando a expectativa de qualquer ganho com a atividade criminosa.

Mas há essa preocupação de que essas florestas em pé que foram queimadas podem ter sido tão degradadas que de fato acabem se convertendo numa área desmatada? É isso que está se analisando?

O Inpe está avaliando para fazer essa decantação, [para checar se] quando recorrentemente uma área pega fogo, ela passa a ser considerada desmatamento. E aí o que você vai ter: desmatamento por corte raso, e desmatamento por fogo. Mas isso traz uma complexidade. Porque o desmatamento por corte raso não acontece em algumas horas, em alguns minutos. Isso nos dá um tempo maior para freá-lo quando recebemos os alertas do Deter.

Um fogo, pelos sistemas de monitoramento que nós temos, quando tem esses alertas, até que eles possam ser processados, já levou pelo menos uma hora e quarenta minutos. Até que as equipes possam chegar, o que era um foco de calor pode virar um incêndio. E, diferentemente da derrubada, em que você pode identificar o agente, o agente do foco de calor é muito mais difícil.

Mesmo assim, nós temos mais de duzentos inquéritos abertos, com algumas pessoas já sendo processadas. E vamos intensificar cada vez mais essa base de inteligência para que os criminosos possam ser identificados e rigorosamente punidos.

E isso tudo não traz uma complexidade maior para o combate ao desmatamento? Há todo um conhecimento do governo para o combate ao corte raso, mas quando entram em cena todos esses fatores a mais, que vão além do comando e controle, o clima deixando a floresta mais frágil. Isso pode vir a comprometer ou dificultar a meta de zerar o desmatamento até 2030?

Olha, isso faz com que a gente se sinta mais desafiado. Fazer política pública com base em evidência significa não ser negacionista em relação aos fatores que estão em jogo, mas trabalhar para controlá-los. 

No governo do presidente Lula, nosso esforço todo é para que, ao chegar a 2026, nós tenhamos um coeficiente em termos de redução de desmatamento que, se continuar nessa trajetória, chegaremos a 2030 com desmatamento zero.

Mas há que combinar as ações de comando e controle com ações de desenvolvimento sustentável. Porque, segundo a legislação, uma parte disso não tem nem o que conversar, que é a criminalidade, mas uma outra parte é preciso disputar o modelo. Porque não precisa mais derrubar para ter prosperidade agrícola, para ter prosperidade econômica. Muito pelo contrário. A prosperidade daqui para frente vai depender da manutenção da floresta, da biodiversidade, do regime hidrológico do país que está muito relacionado às florestas.

Sobre esse desafio, de disputar o modelo econômico. No próximo dia 12, se completam 20 anos do assassinato da irmã Dorothy, em Anapu (PA), crime que ocorreu em decorrência da disputa de terra naquela região e em oposição aos projetos de desenvolvimento sustentável (PDS) que ela defendia e que visavam a uma reforma agrária aliada com a proteção da floresta. A senhora era ministra naquele momento, estava lá perto quando aconteceu. De certa maneira, o combate ao desmatamento, talvez, tenha ganhando a tração que precisava por causa do assassinato de Dorothy?

O assassinato de irmã Dorothy se deu no contexto da implementação das políticas públicas de combate ao desmatamento [o PPCDAM, que tinha começado a ser implementado em 2004]. Não é que as políticas foram feitas depois do assassinato. O assassinato se dá como uma represária ao trabalho que ela fazia historicamente e como uma represália ao que o governo começou a fazer, criando, inclusive, as unidades de conservação e as reservas extrativistas (Resex) na região.

Quando ela foi assassinada, eu estava naquele dia em Porto de Moz, na assembleia da criação da Resex Verde para Sempre. Lá também havia muita tensão. Tanto que a Polícia Federal estava comigo, eu estava com o colete à prova de bala, guarda-chuva à prova de balas. Eu nunca nem tinha visto esses apetrechos. Na assembleia, os supostos fazendeiros ou os que faziam exploração ilegal de madeira dentro da área da Resex tinham aliciado pessoas para votar contra a criação da Resex e também para intimidar as pessoas que levantassem o braço para votar a favor. A defesa da criação da Resex foi feita por mim, porque muita gente estava receosa de se expor. Ganhou a proposta e, não sei se foi cinco, dez minutos depois, o Globalsat [telefone por satélite] do Greenpeace tocou, o Paulo Adário [ambientalista da ONG] atendeu, foi para cima do palanque e falou a Irmã Dorothy tinha acabado de ser assassinada.

Na mesma hora, eu pedi para que a gente saísse de lá, pegássemos o helicóptero e fôssemos para Anapu. Quando eu estava indo, me veio uma intuição, de que o caso não podia ficar na mão da polícia estadual, porque tinha muita gente envolvida. Eu falei para o delegado da Polícia Federal que estava comigo que ele precisava entrar no caso. Ele falou que não podia, porque era competência do Estado. Aí, eu digo: mas não tem nada que se possa fazer? Ele disse: só se eu receber uma ordem expressa do Presidente da República. 

Na mesma hora peguei o telefone do Paulo Adário, liguei para o [Celso] Amorim [então ministro das Relações Exteriores, que estava viajando com o presidente Lula]. Eu digo: eu preciso falar com ele, é muito grave. O Lula atendeu, eu falei muito rapidamente: acabaram de assassinar a irmã Dorothy, que é uma freira, com uma trajetória muito parecida com tudo o que aconteceu com o Chico Mendes, e nós não podemos deixar isso na mão da polícia do estado, é preciso que a Polícia Federal entre no caso, e ele [o delegado] disse que só pode fazer isso se tiver uma ordem direta do senhor. Aí, ele disse: então passa o telefone para ele que eu vou já falar. Na mesma hora, nós pegamos o helicóptero, fui com os policiais, descemos em Anapu, e eles foram para o assentamento [Esperança, onde Dorothy foi morta]. Quando eles voltaram, já era noite. E quando o carro entrou na cidade, aí houve um foguetório, eram fogos para tudo quanto é lado. Eu fui até a picape e vi uma cena que era… o contraste entre um fruto se decompondo e a barbárie florescendo. Ela estava no carro, no chão do carro, uma perna para lá, outra para cá, e aquele foguetório.

Para mim tudo aquilo foi muito, muito forte, e aí todo o trabalho que foi feito, havia uma tentativa de intimidar, mas ele não recuou um milímetro, muito pelo contrário.

O resultado a gente conhece: o desmatamento começou a cair até chegar ao valor mais baixo em 2012, mas depois ele começou a voltar até subir bastante nos anos Bolsonaro. Um dos pontos do PPCDAm que não foi alcançado naquela época era trazer alternativas econômicas para um desenvolvimento sustentável. 20 anos depois, e à luz dos desafios atuais, quanto essa continua sendo a maior dificuldade para evitar uma retomada do desmatamento?

As dificuldades para continuar reduzindo o desmatamento e chegarmos ao desmatamento zero em 2030 são de natureza variada. Tem que continuar mantendo as ações de comando e controle para que não haja nenhum retorno da criminalidade. Tem que criar instrumentos econômicos para poder incentivar as atividades produtivas sustentáveis. E tem que fazer novos marcos regulatórios para poder dar suporte legal a essas novas atividades, inclusive instrumentos creditícios de assistência técnica, novas modalidades de criação de unidades de conservação, que inclusive estão em curso para a destinação dos 50 milhões de hectares de área não destinada [na Amazônia].

O Ministério do Meio Ambiente, o ICMBio e o Incra já estão fazendo a destinação dos primeiros 5 milhões dessas áreas para comunidades locais que não se enquadram nem nas reservas extrativistas nem nos assentamentos extrativistas, mas que terão a titularidade para o usufruto dessas áreas. E a mudança do modelo de desenvolvimento da região, para atividades que não sejam mais de conversão de floresta. A versão atual do PPCDAm traz, além dos eixos originais de combate às práticas ilegais, desenvolvimento sustentável e ordenamento territorial e fundiário, também novos marcos regulatórios e instrumentos econômicos.

Nos municípios que mais desmatam, o foco é o comando e controle, com ação não só com os governos estaduais, mas com os municipais, com o programa União com Município, com mais de R$ 700 milhões do Fundo Amazônia. E estamos ampliando outras frentes, como, por exemplo, a implementação do Bolsa Verde, que é uma espécie de pagamento por serviço ambiental, que já chegamos a 57 mil famílias e queremos chegar a 100 mil. Estamos trabalhando com o Ministério da Agricultura, transformando todos os recursos do Plano Safra em incentivos também à agricultura de baixo carbono. E, dando lastro a tudo isso, temos a diretriz de política ambiental transversal colocada no Plano de Transformação Ecológica e no Pacto pela Transformação Ecológica envolvendo os três poderes.

Eu diria que agora temos um ambiente completamente diferente de 20 anos atrás. Agora, o próprio Ministro da Fazenda lidera com o Ministério do Meio Ambiente uma série de iniciativas voltadas para essa agenda do desenvolvimento sustentável. O desafio é manter comando e controle, com instrumentos econômicos e de suporte tecnológico à abertura de novos mercados para uma mudança no paradigma de desenvolvimento.

Falando em três poderes, os novos presidentes da Câmara e do Senado, Hugo Motta e Davi Alcolumbre, não são pessoas particularmente afinadas com as pautas ambientais, como também não eram os presidentes anteriores. Ambos já votaram contra a agenda ambiental várias vezes. E a senhora disse há pouco que as leis não podem ser mais flexibilizadas. Mas há uma série de projetos em tramitação que foram apelidados como “pacote da destruição” justamente porque fazem isso. Como espera que vai ser a relação com eles?

Com aquilo que eu mais prezo, até porque eu fui senadora durante 16 anos, vereadora, deputada estadual: o diálogo. Foi o que fez com que tivéssemos conseguido evitar que algumas dessas agendas bombas na área ambiental prosperassem no Congresso e que conseguíssemos aprovar projetos importantes para a agenda ambiental, como a lei de crédito de carbono, o manejo integrado do fogo, que é fundamental para esse momento. Aprovamos na Câmara dos Deputados a lei de incentivo à visitação de unidades de conservação para essa agenda do turismo. Não vai ser diferente. É o diálogo. Pude observar no discurso dos dois presidentes que eles estão inteiramente abertos ao diálogo e, numa democracia, nada se consegue que não seja pelo argumento e pelo convencimento. É assim que vamos trabalhar.

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